Histórias e confidências de Antonio Bivar
Por Alvaro Machado
Por Alvaro Machado
Vânia Toledo
Exclusiva: o que o Brasil nesses anos todos? Este era nosso país, nossa cultura. É demais, leiam.
O dramaturgo da marginália brasileira hoje frequenta a
sociedade literária inglesa
Dizer
que Antonio Bivar, 63, é um dos três autores que renovaram a dramaturgia
brasileira no final dos anos 60 e início dos 70, ao lado de Plínio Marcos e
José Vicente, não é nenhum exagero. Com peças como “Alzira Power” e “Cordélia
Brasil”, seu público à época foi tão grande ou maior que o de Plínio Marcos.
Mas é ainda dizer pouco, pois desde então o autor marcou presença em outros
círculos culturais, além de honrar bastante sua forte vocação de viajante.
Ex-andarilho
contumaz, principalmente nas cidades onde morou (Rio, São Paulo e Londres),
hoje o escritor costuma submergir entre quatro paredes para temporadas de
leituras que duram semanas. Atende a poucos convites, embora esses sejam
muitos, pois amigos e conhecidos não esquecem seu encanto pessoal e maneiras de
gentleman.
À parte
o fato de ele ser um notável “causeur” -misturando épocas, nomes e estilos com
efeito devastador- o que provoca a unanimidade que elege Antônio Bivar uma
pessoa tão adorável?
Parte
da imantação atual de Antônio Bivar origina-se, com certeza, em seu talento
para apagar fronteiras e preconceitos. O autor de clássicos nos quais
exuberantes e solitárias senhoras da classe média trocam figurinhas com
excluídos urbanos expressa-se em mescla singular de “witty”, perspicácia à
inglesa, e ingenuidade e simplicidade franciscanas.
Gosta
de observar detalhes absurdos da decadente região central de São Paulo, onde
mora, e mantém correspondência com a intelectualidade londrina mais refinada,
na condição de único membro brasileiro da International Virginia Woolf Society.
Privou da amizade do sobrinho e biógrafo de Virginia, o escritor Quentin Bell
(1910-96), ao mesmo tempo que ajudava a organizar festivais musicais para punks
da periferia de São Paulo e do ABC. Comparece anualmente a encontros na fazenda
Charleston, a uma hora de Londres, com a nata dos escritores de língua inglesa,
e passa fins de semana bucólicos em Ribeirão Preto, onde parte de sua família
se radicou.
Bivar
tem atuado também com escritor de biografias e jornalista cultural. É sua, por
exemplo, a reportagem de capa da revista “Trip” de outubro último, com um texto
entusiasmado sobre a história do punk no Brasil, que tem um marco no festival
“O Começo do Fim do Mundo”, de 1982, no Sesc Pompéia (São Paulo), por ele idealizado.
Ainda
neste ano a editora LP&M reedita seu volume de memórias “Verdes Vales do
Fim do Mundo”, de 85, e a Secretaria de Estado da Cultura do Paraná lança
pequena tiragem de uma reunião de suas três principais peças, jóias de brilho
duradouro. Enquanto isso, a Brasiliense reedita seus livros “O Que é Punk” (82)
e “James Dean” (84), e o autor escreve, para a mesma editora, breves
monografias sobre Jack Kerouac e Virginia Woolf.
Entusiasmado
com o festival de música e cultura punk que ajudou a organizar em novembro e
que marcou 20 anos do festival punk no Sesc Pompéia, Bivar se diz “renovado” a
cada reencontro com esses amigos músicos. Não importa a facção a que pertençam,
os punks paulistas o respeitam como a um guru beat -fato raro nos tempos atuais
de pós-adolescentes parricidas. Sua entrevista para Trópico começa,
justamente, com esse mergulho na força punk, para revisitar depois os dias do
exílio europeu, 1970-72.
Como foi o último festival de música e cultura punk, que vocês chamaram “O Fim do Mundo”?
Antônio Bivar: Foi o fecho da
trilogia “Fim do Mundo”. O primeiro festival, de 82, no Sesc Pompéia, chamou-se
o “O Começo do Fim do Mundo”, e no ano passado teve “A Um Passo do Fim do
Mundo”, já no Tendal da Lapa. Comparecem umas 8.000 pessoas, e isso sem
divulgação nos jornais, só pela internet.
Acho que os punks são o primeiro
movimento pós-moderno no mundo. É uma cultura anarquista internacional que
influenciou tudo, um divisor de águas. No Brasil deu uma grande arrancada. É a
cara de São Paulo, apesar do nome importado. É um movimento de grande paixão e
celebração, de irmandade, que remete ao anarquismo de 1917 em São Paulo. Neste
ano tivemos 64 bandas, desde as mais antigas, como Cólera, Fogo Cruzado e
Lixomania, até as novíssimas, como a Holly Tree -que agora vai excursionar pela
Europa-, Flicts, Lambrusco Kids, General Bacon e outras.
Musicalmente, o movimento está muito
melhor agora, mais criativo. Apesar de nas bandas existir hoje em dia até gente
que estudou na Faap, como os integrantes do Holly Tree, todos vêm da classe
média baixa. Para mim, os fatores mais positivos do punk são a insubordinação e
a criatividade do “faça você mesmo”, porque eles conseguem fazer de tudo com os
elementos mais básicos.
Como você começou a se interessar
pelo punk?
Bivar: Na década de
80 passei um outro ano na Inglaterra e acompanhei o movimento musical. Então,
em 82, escrevi o pequeno volume “O Que é Punk”, para a editora Brasiliense, e
tive a idéia de fazer um festival de música e cultura punk no Sesc Pompéia. Foi
um sucesso louco, com repercussão em jornais de Washington, do Japão... São
Paulo ficou parecendo a Meca punk, foi um impacto.
Lembro-me de Lina Bo Bardi (arquiteta
do Sesc Pompéia) com aquele penteado tapa-olho, parada ali com cara de
brava... A meu pedido, ela colocou uma rotunda preta no palco, para esconder
uma faixa do Zizinho Papa, político malufista que estava na direção do Sesc e
que os punks odiavam. Ela me perguntou: “Bivar, mas esses punks não são uns
fascistas?”. E eu respondi, bem calmo: “Não, dona Lina, eles são anarquistas”.
Então ela deu um jeito de colocar o pano preto sobre a faixa do político.
Esse primeiro encontro é um mito entre
os punks, e para mim foi um grande e maravilhoso teatro. Ninguém ganhou um
centavo. Já em 98 fui chamado pela Secretaria da Cultura de Santo André e pelo
Motim Punk da cidade para escrever uma ópera punk sobre a briga entre as
facções do ABC e de São Paulo. Trabalhei oito meses. Pegava o trem para Santo
André na Estação da Luz, foi ótimo.
Houve uma época em que você
escrevia regularmente na imprensa e fazia longas entrevistas com artistas e
escritores brasileiros. Qual foi a última?
Bivar: Fiz muita
coisa para a extinta revista “A-Z”, onde eu era “editor de estilo”, aliás coisa
que inventei. Lá também trabalhava o Caio Fernando Abreu. Eu escrevia com uns
dez pseudônimos, entre eles o de Sra. Lisandro Deprê, que era assim a mais lida
e querida. Às vezes escrevia o número quase inteiro. A última entrevista foi
com a Aracy de Almeida, pouco antes de ela morrer. Ela morava no hotel Alvear,
no centro de São Paulo, e trabalhava como profissional de júri do Sílvio
Santos. Não queria dar entrevista, cobrou, mandou dizer que “não estava com
saco”... Mas no fim rolou uma coisa entusiasmada.
Entrevistou escritores também?
Bivar: Gostei de
entrevistar, durante vários dias, a Cassandra Rios. Foi para a revista feminina
“Nova”, em 80, mas acabou não saindo, porque os editores acharam que eu só
colocava a Cassandra para cima. A Cassandra escrevia bem. Li quase todos os
livros dela antes de fazer a entrevista. Ela também morava no centro, na rua
Cesário Motta Jr., num apartamento pequeno como uma casa de bonecas. Mas sempre
escondia o lado gay e dissimulava, apesar de estar sempre em companhia de uma
moça chamada Vera.
Quem também gostava de ler as coisas
dela era o Jorge Amado. Outro que gostava era o autor do livro “Como Era Verde
o Meu Vale”, o galês Richard Llewellyn, que morou no sul do Brasil e foi
publicado pela editora Globo. Esse livro foi comprado pela Metro, que filmou com
direção de John Ford, em 1941. Na infância eu adorava o filme, que citei num
título de um livro: “Verdes Vales do Fim do Mundo”.
Mas, voltando à Cassandra, eu dirigi o
show “Drama” da Maria Bethânia, em 73. A Bethânia adorava a Cassandra, que
estava na lista de convidados da estréia do espetáculo em São Paulo. A
escritora chegou com um pacote de suas novas edições, todas best sellers, e a
Bethânia, que quando era adolescente lia escondido os seus livros na Bahia,
ficou felicíssima.
Nós também líamos a Cassandra
escondido...
Bivar: Não! Em
adolescente eu lia “A Carne”, do Júlio Ribeiro, da biblioteca de um tio,
enquanto me masturbava trepado em uma jabuticabeira da fazenda.
E da Adelaide Carraro, você
gostava?
Bivar: Nem tanto. A
Adelaide era rival da Cassandra, mas também “explodiu”. A Cassandra me declarou
“off the records” que era ela quem reescrevia todos os livros da Adelaide
Carraro, embora elas se detestassem. Parece que eram da mesma editora...
Interessante: eu imaginava mesmo a Adelaide como uma “sub-Cassandra”. Depois a
Cassandra comprou uma casa pré-fabricada em um desses lugares perto de São
Paulo e sumiu.
Meses atrás eu estava num vernissage da
Pinacoteca do Estado e apareceu uma astróloga lésbica bem conhecida, que mora
em Berkeley. Ela acabava de chegar de uma reunião com a Danda Prado (Yolanda
Prado), da editora Brasiliense, e a Cassandra Rios. Essa astróloga me
mostrou a autobiografia da Cassandra, que tinha acabado de sair. Ela estava
numa fase tão boa e, de repente, morreu, neste ano...
Você se sente velho quando essas
pessoas morrem?
Bivar: Eu não!
Velhíssima eu achei agora a Maggie Smith no filme “Gosford Park”, de Altman. Eu
assisti a três peças com a Maggie em Londres. A primeira foi “Hedda Gabler”, em
70, dirigida pelo Ingmar Bergman. Depois em 81, ela fez a Virginia Woolf no
palco, em “Virginia”, peça da irlandesa Edna O’Brien. E em 90 eu a vi em “A
Importância de Ser Prudente”, de Oscar Wilde. Sempre uma atriz maravilhosa.
Fale do livro de memórias “Os
Verdes Vales do Fim do Mundo”, que está sendo republicado agora pela LP&M
de Porto Alegre.
Bivar: É da época do
desbunde, do exílio, Londres, 1970 e 1971, e descreve exatamente isso. Aparecem
muito a Helena Ignez, o Rogério Sganzerla, Julinho Bressane, o Jorge Mautner,
Caetano, Zé Vicente, Leilah Assumpção, Antônio Peticov, essa turma, a
comunidade pop na época da ditadura brasileira.
Os mais politizados iam naquela época
para Paris ou para a Itália, como Chico Buarque, Cacá Diegues, Nara Leão... E a
turma pop ia para Londres. Havia também um pessoal em Nova York: Rubens
Gerchmann, Mautner... Esse livro saiu primeiro em 85, que foi uma década boa
para os autores, de renascimento brasileiro, já sem o ranço hippie. Foi quando
traduziram os autores beat dos anos 40 e 50: Kerouac, Burroughs e outros.
Você traduziu livros desses
autores?
Bivar: Sim, o “On the
Road”, do Kerouac, em parceria com o Eduardo Bueno, que na época era muito
garoto e muito ambicioso... Fui convidado para revisar a tradução dele e vi que
tinha de reescrever. Mas fiquei muito decepcionado com a idéia da tradução para
editoras, porque eu tinha aquela noção do trabalho de escritores como Cecília
Meireles, Mário Quintana e Manuel Bandeira, que praticamente reescreviam os
clássicos. Já na minha época, a editora vinha arrancar a página da máquina de
escrever.
Mas voltando a “Verdes Vales”...
Bivar: É um texto de
muita sinceridade e até hoje vale por isso. Em 95 publiquei o “lado B” desse
livro, que narrava o ano seguinte, de 72, também passado no exílio: “Longe
Daqui, Aqui Mesmo”. Sempre gostei de autores que escrevem como adolescentes ou
colegiais, com linguagem sincera, quase de criança.
“Longe Daqui, Aqui Mesmo” é um título
que vem de uma peça minha, que o Antônio Abujamra dirigiu com a vedete Nélia
Paula. Escrevi essa peça em Nova York, no hotel Chelsea, onde oito anos depois
o Sid Vicious mataria a Nancy Spungen e onde tanta coisa aconteceu. Nesse mesmo
hotel moraram Mark Twain e Arthur Miller. O Jorge Mautner era massagista de um
paraplégico riquíssimo, que tinha uma suíte no hotel, com as paredes forradas
de Degas, Warhol, Modigliani... O Mautner vivia com a mulher e o pai numa suíte
anexa à do paraplégico, e quando esse homem foi passar uns meses na fazenda que
tinha no Novo México, Mautner e família mudaram-se para a grande suíte,
enquanto eu fiquei na pequena.
No Chelsea circulavam as celebridades da
esquerda e do underground: eu subia no elevador com a Jane Fonda acompanhada
dos black panthers... Foi uma época engraçada, na qual eu aprendi, depois de
algum ácido que foi decisivo, a abandonar todas as bagagens e assumir um olhar
ingênuo, franciscano... Aprendi a não ter preconceito e a conviver e me
encantar com todos os lados da vida, com todos os mundos. De repente você está
perto da aristocracia inglesa, de repente com o lúmpen, com os punks.
Nos anos 60 e 70 essas
aproximações pareciam possíveis. Agora as coisas parecem não se misturar e você
quase não tem acesso a esses mundos.
Bivar: Sim, isso era mais espontâneo lá
atrás. Agora voltou um complexo de inferioridade muito forte nas pessoas, de
classe, por causa exclusivamente de dinheiro, uma coisa que eu vejo muito em
São Paulo e que machuca muito. Antes ninguém fazia questionário sobre sua
condição social para começar um diálogo, e as coisas dependiam muito de você mesmo,
do seu talento, da sua comunicabilidade. Agora existe esse isolamento...
Eu
me lembro, por exemplo, de conversar longamente com o filho que a Elizabeth
Taylor teve com o Michael Wilding. Era um hippie bem remendado. Na Inglaterra
dos anos 60 a gente se internava nos “ashrams” (retiro hinduísta) e
ficava do lado da princesa não sei de onde e de gente riquíssima, mas ninguém
ligava muito para isso.
Qual foi a repercussão de sua peça “Alzira Power”?
Bivar: Foi um estouro, com a Yolanda Cardoso
e o Marcelo Picchi. “Alzira” foi considerada, na época, uma peça feminista. Até
hoje eu encontro umas mulheres loucas que dizem: “Olha, sua peça me liberou!”.
Escrita em 69, a “Alzira” nunca deixou de ser remontada, no Brasil inteiro. Foi
feita até em Serra Pelada!
Como você sabe disso?
Bivar: Porque eu recebi os cartazes. Foi com
uma drag queen do Belém do Pará, que depois refez a montagem em São Paulo, na
boate Madame Satã. Também foi feita em Portugal, na Inglaterra e na Argentina
com a Delma Ricci... Essa Delma era uma espécie de Eliana do cinema argentino
dos anos 50.
Tua ligação com a Inglaterra é algo regular e você
tem comparecido a muitos encontros com literatos que estudam a atividade do
grupo Bloomsbury, de Virginia Woolf. Como isso tudo começou?
Bivar: Foi por causa de um livro que
encontrei casualmente num apartamento em São Paulo, enquanto dirigia um show
para a Rita Lee. Para começar do começo: quando eu voltei de Londres para o Rio
a Bethânia apareceu na casa da poeta e dramaturga Isabel Câmara e pediu que
dirigíssemos um show para ela, que foi o “Drama”.
Depois
disso a Rita Lee saiu dos Mutantes e me chamou para dirigir o primeiro show da
carreira solo dela, “Atrás do Porto Tem uma Cidade”, com o grupo Tutti Fruti, e
essa foi a primeira temporada de rock num teatro brasileiro, tipo dois meses,
de terça a domingo, no Teatro Ruth Escobar, uma revelação... Mas os meninos não
sabiam tocar direito e demoravam um tempão, entre um número e outro, reafinando
os instrumentos. Então nesse intervalo eu fiz uma coisa meio Factory, Andy
Warhol, projetando nos cenários uns filmes pops em super 8 do Abraão Berman e
também reproduções de fotos de números antigos da revista “Cinelândia”.
Era
uma coisa “high camp”, como diziam uns ingleses que foram assistir. Eu estava
embebido de Roxy Music, Brian Ferry, Lou Reed, David Bowie, enfim do “glamour
rock”. E ficou aquela coisa de “nova efeminação”, cínica e engraçada.
A
Rita tinha aquele corpo andrógino, mas não gostava da música glitter. Ela
venerava o Emerson, Lake and Palmer. Mas a gente conseguiu cortar o cabelo da
Rita à la Bowie. Depois trabalhei com ela outras vezes, em programas de rádio,
no “TVLeezão” da MTV, de 91... Eu a considero uma atriz do nível de Cacilda
Becker. Quando voltei do show “Atrás do Porto” para o Rio, a Bethânia me deu
uma bronca: “Sim senhor, seu Antônio Bivar! Depois de dirigir uma estrela do
meu nível foi trabalhar com dona Rita Lee...” (risos).
Mas,
para responder finalmente à tua pergunta sobre as viagens mais recentes à
Inglaterra, tudo começou quando eu ensaiava esse show da Rita e morava num
apartamento da rua Santo Antônio, em São Paulo. Nesse lugar, eu descobri um
livro da Virginia Woolf, “As Ondas”. Fui imediatamente nocauteado pelo estilo e
passei a ler tudo, traduzido ou em inglês.
A
partir de 91 comecei a ir para os lugares onde ela tinha morado, para a
Cornualha, para St. Ives, onde ela passou a infância, ainda no século 19. E fiz
todo o roteiro da vida dela. Sempre me identifiquei com o humor e os pinotes de
sua narrativa, com essa “ciclotimia”, que eu adotei bastante e que você percebe
mesmo nesta entrevista. Em 93 eu estava abrindo um volume dela numa livraria em
Londres e caiu um folheto falando de uma Summer School na Fazenda Charleston,
onde moraram os pintores pós-impressionistas ingleses Duncan Grant e Vanessa
Bell, e também Maynard Keynes -que escreveu lá “As Conseqüências Econômicas da
Paz”-, Lytton Strachey -que aparece no filme “Carrington”.... Então implorei
para ser aceito lá, entre 21 pessoas, acadêmicos europeus e americanos. Fui e
eles gostaram muito.
Um
dia fomos à casa do Quentin Bell, o sobrinho da Virginia Woolf e autor da
biografia clássica da escritora. Ele passou a infância na fazenda Charleston.
Sua mulher, Olivier (Anne Olivier Bell), me disse ao final do encontro:
“Ele quer ter ‘intimacy’ com você”. No sentido de que ele queria privar uma
amizade intelectual comigo, por afinidades. Então tivemos uma longa
correspondência, voltei para visitá-lo diversas vezes e também fiz uma longa
entrevista.
Ele
morreu em dezembro de 96 e fiquei com umas 20 cartas dele para mim, bastante
longas. No ano passado fui convidado por sua viúva para ficar na casa deles
durante o festival de Charleston. E outro dia vi na internet uma coisa
curiosamente ligada a meu nome e ao dele: “The Quentin Bell Papers”. Porque
depois de sua morte as minhas cartas para ele e seus demais papéis foram doados
à Universidade de Sussex. Achei muito chique. Se eu morrer aqui, amanhã, quem
da USP vai procurar catalogar as coisas que fiz? Quem vai procurar meus diários?
Ninguém.
Você tem muitos diários?
Bivar: Uns 40 volumes. Desde o show da
Bethânia de 73, porque antes eu queimava. Nunca tive lugar muito fixo, morando
aqui e lá. Por isso eu ia às vezes para um terreno baldio e queimava tudo.
E o que você produziu de literário a partir das
viagens de estudos sobre o Bloomsbury?
Bivar: Achei que pudesse fazer um livro a
partir de meu primeiro diário de Charleston, de 93. Ofereci ao Luiz Schwarcz,
que era meu amigo na época da Brasiliense, mas ele sugeriu fazer uma ficção. Aí
desanimei e nunca trabalhei isso. Tenho cinco diários, de todas as vezes que
estive nesses encontros, das escolas de verão ou dos festivais literários, ao
qual comparecem umas 150 pessoas.
Fiz
algumas entrevistas, com o Harold Pinter, por exemplo, e com escritores
norte-americanos. No ano passado, no calor do verão inglês, as vacas mugindo e
aquele cheiro de estrume, o Pinter leu uma peça dele, fazendo todos os
personagens, numa tenda simpática. Sua mulher, lady Antonia Fraser, também deu
uma palestra: “Glamour e Guilhotina”. E o Michael Cunningham falou sobre seu
livro “As Horas”, publicado aqui pela Companhia das Letras e que ganhou o
prêmio Pulitzer nos EUA... Agora fizeram o filme “As Horas”, com Nicole Kidman
e Meryl Streep.
Saí
para jantar com Cunningham quando ele esteve no Brasil, e fiquei sabendo que
esse livro surgiu de sua paixão adolescente pelo livro “Mrs. Dalloway”, de
Virginia. Porque “Mrs. Dalloway” era para ser chamado “As Horas”. Ele veio para
cá com um caso dele, que é médico. Nunca tinha estado em Charleston, mas eu
falei tanto, que no ano seguinte ele estava lá. Nesse ano, enquanto ele fazia
uma palestra sobre “As Horas”, perguntei subitamente da platéia: “Quem vai
fazer a Virginia Woolf no filme?”. Fez-se aquele silêncio... Ele pediu para
todos permanecerem calmos e disse: “Nicole Kidman”.
Bem, ela é uma das maiores estrelas atuais, não?
Bivar: É, mas fisicamente não tem nada que
ver com a Virginia. E em “Moulin Rouge” foi tão chata...
Mas não dava mesmo para transformar os seus diários
em ficção?
Bivar: No ano passado senti que poderia fazer
isso, com o conjunto do material. Aliás, todo ano fazem lá muita teatralização
com temas do grupo de Bloomsbury, a partir da correspondência de Virginia com a
Vita Sackville-West etc. Participam ótimos atores, como o Edward Fox, o Simon
Callow. Este ano esteve lá o Merlin Holland, neto do Oscar Wilde...
As
pessoas bebem pouco, mas sempre tem uma taça de vinho branco, troca-se idéias,
é uma coisa civilizada, com conversas deliciosas, gente que está no auge do
brilho intelectual, que agora dizem que é terceira idade. A Frances Partridge,
por exemplo, está com 102 anos e é muita engraçada, com frases de muito
“witty”. Por que a gente não faz encontros assim no Brasil, com tantos lugares
interessantes, onde se come bem etc.?
E o lado sensual dessa gente em tempos passados
parece que era bastante forte, não?
Bivar: Ah, sim. Numa das últimas vezes, por
exemplo, fomos à casa do Richard Garnett, que era filho do David Garnett, que
teve um caso com o pintor Duncan Grant, que era bonitão e namorava o Keynes, o
Lytton e todo mundo. Na fazenda Charleston eles transavam demais, levavam até
uns bandidos e uns garotos meio barra-pesada, que roubavam os quadros do
Duncan. A Vanessa Bell, irmã da Virginia Woolf, apaixonou-se pelo Duncan e
tiveram uma filha, a pintora Angelica Garnett. Em 99, na Tate Gallery, houve
uma grande retrospectiva dos pintores do grupo Bloomsbury.
Você acabou de voltar de um outro “séjour”
literário, desta vez no sul da França. Por que foi para lá?
Bivar: Fui com estudiosos do grupo de
Bloomsbury e visitamos os lugares onde Virginia Woolf e os pintores ingleses
viviam parte do ano: Cassis, cidade próxima a Marselha. Foi por uma semana, mas
fiquei outros 20 dias estudando os pintores pós-impressionistas franceses,
Cézanne, Matisse, Van Dongen, Picasso e demais, nos locais onde eles tinham
ateliês, em Nice, Aix-en-Provence e outros lugares.
Tenho
um lado de pintor diletante, e até cometi algumas aquarelas e desenhos. Em meu
“sketch book” dessa viagem fiz pequenas cópias das obras que via por lá.
Terminei em Paris, com um vis-a-vis com a “Mona Lisa”, no Louvre. Era tanta
cabeça de japonês na minha frente, mas eu não podia deixar de realizar esse
sonho de infância, de fazer um esboço da Mona. (Bivar acende um cigarro)
Não sabia que você fumava...
Bivar: Só enquanto a gente toma um vinho. Mas
comecei a fumar muito garoto, aos 18 anos, quando fui para o Rio estudar e uma
tia minha arranjou ingressos para irmos ver o Sérgio Cardoso no teatro. Ele
estava na peça “Sexy”, do Silveira Sampaio. Daí fui cumprimentar o Sérgio no
camarim e ele mandou que eu o esperasse desfazer a maquiagem. Em seguida eu o
acompanhei até o seu apartamento, em Copacabana. Mantivemos a amizade, mas
quando eu tinha de esperá-lo depois do teatro ficava muito nervoso e passei a
fumar.
Outra
coisa relacionada a cigarro que eu não esqueço é da primeira temporada do
Rudolf Nureyev no Brasil, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 66. Eu
estudava no Conservatório Nacional de Teatro e a professora de expressão
corporal, a Nelly Laport, amiga da Margot Fonteyn, me levou junto com um grupo
de seis outros alunos para participar da montagem de “Giselle”. Nós fazíamos os
caçadores do séquito de Nureyev. Durante os ensaios eu estava fumando no palco
e levei uma baita bronca do Nureyev: “Boy, don’t smoke here!”.
Lembro
que a estréia do espetáculo estava com atraso, e a Margot ficou nervosíssima,
porque o Nureyev não saía do camarim. De repente, a porta abre, ele vem
correndo e começa o espetáculo, enquanto do camarim sai um dos garotos do
séquito, todo destruído, a camisa rasgada, os óculos quebrados, com marcas
horríveis de chupões no pescoço. Foi um escândalo!
Mas já que estamos falando desses tempos mais
antigos, como você começou no teatro profissional?
Bivar: Fiz curso de teatro no Conservatório
Nacional de Teatro, no Rio, e comecei de fato como autor com “Cordélia Brasil”.
Mas, antes disso, na época da cultura pop, eu fiz com o Carlos Aquino um
happening teatral no Rio, e isso me deixou conhecido da noite para o dia, pois
o título, que era meu, provocou enorme curiosidade: “Simone de Beauvoir, Pare
de Fumar, Siga o Exemplo de Gildinha Saraiva e Comece a Trabalhar”. Depois de
uma notinha em coluna social, todos comentaram esse título na imprensa, de
Millôr Fernandes a Stanislaw Ponte Preta, e o Carlinhos de Oliveira no “Jornal
do Brasil” deu treze crônicas por causa desse título.
Eles
diziam que era uma peça sobre a “geração Paissandu”, por causa do cinema
Paissandu. Aí criou-se uma expectativa enorme. A primeira pessoa para quem dei
uma entrevista foi o Fernando Gabeira, no “Jornal do Brasil”, antes do
seqüestro. Mas a peça era uma piada. O Yan Michalski, do “JB”, publicou uma
crítica com título-trocadilho: “Gildinha dá raiva”, dizendo que a gente possuía
um talento nada desprezível, mas tinha ocupado muito espaço na mídia com essa
brincadeira, enquanto no Rio estava atuando o Teatro Oficina e havia tanta
coisa séria.
Quem trabalhou nessa peça-happening?
Antônio Bivar: A Tânia Scher, uma das garotas de
Ipanema, maravilhosa, que aos 17 anos não saía das capas das revistas da época,
o Ênio Gonçalves, o Perry Salles. A direção era de um assistente do Glauber
Rocha, o Álvaro Guimarães, da turma que tinha vindo da Bahia para o Rio, amigos
da Helena Ignez.
Você cismou com os títulos compridos...
Bivar: No ano seguinte houve outro título
comprido, “O Começo é Sempre Difícil, Cordélia Brasil, Vamos Tentar Outra Vez”.
E “Alzira Power” era, por sua vez, “O Cão Siamês de Alzira Porra Louca”... E
teve “Abre a Janela e Deixa Entrar o Ar Puro e o Sol da Manhã”, que foi montada
em 68, em São Paulo, com Maria Della Costa, direção de Fauzi Arap, com a qual
ganhei todos os prêmios do ano, inclusive o Molière, indo para Londres com esse
prêmio.
Depois
dirigi os shows e o teatro ficou meio de lado, por causa da onda “divina
decadência” que chegou em 72 e 73, muito pelo cinema, com “Laranja Mecânica”,
“O Último Tango em Paris” e, principalmente, “Cabaret”. Era uma coisa muito
forte. Essa onda pegou o teatro, com o show “Dzi Croquetes”, que era nesse
espírito, e com Ney Matogrosso e os Secos e Molhados, que foi uma comoção no
Brasil, mais do que Tiazinha hoje na capa da “Playboy”, porque eu me lembro de
ter viajado pelo interior do Brasil, meio andarilho que eu era, e em todos os
lugares as pessoas comentavam a maquiagem do Ney.
Em 1976, você ainda escreveu uma peça especialmente
para o Ziembinski, “O Quarteto”, que eu assisti no Teatro Ipanema e lembro que
era emocionante.
Bivar: Foi numa fase meio difícil, durante um
retorno meu ao teatro como ator, fazendo o Riff Raff do “Rocky Horror Show”,
que eu co-traduzi. Eu sempre fui anarquista, queria acabar com o teatro, isto
é, com tudo o que tinha vindo antes. No mesmo ano escrevi mais uma peça, que
era uma espécie de encontro entre a classe média rica do Arena, o Guarnieri e o
Boal, e a classe média baixa de autores como eu e o Zé Vicente. Fiz uma coisa
muito sofisticada no teatro de Arena, “Gente Fina é Outra Coisa”.
O
Paulo Villaça dirigiu, o elenco tinha a Yolanda Cardoso, o Clóvis Bueno fez o
cenário art-déco, Glorinha Kalil deu os tecidos para o Clodovil fazer os
figurinos. Era uma coisa um tanto agressiva para o Arena. Sábato Magaldi ficou
indignado, dizendo que eu não era sério, mas Telmo Martino, no “Jornal da Tarde”,
me comparou a Noel Coward.
Eu
senti na pele que a gente já não interessava muito e tinha de dar lugar a
novidades, como o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, do Rio. Então o Ziembinski
me chama para escrever a peça que comemoraria os seus 50 anos de carreira, que
começou na Polônia e continuou com “Vestido de Noiva” no Brasil etc. Eu lembro
que todos falavam “Mestre Zimba”, que foi ele quem fez Cacilda explodir. Era
uma época em que eu estava para baixo, com muito sexo, drogas e rock’n roll,
anos 70, e esse pedido foi ótimo.
A
gente conversava sobre “Quarteto” pelo malote da Rede Globo. Ele me orientava
sobre tudo o que queria. Eu pensava: “Vou fazer tudo o que o mestre mandar”.
Portanto os personagens eram da cabeça dele, havia um astrólogo de 68 anos, que
era a idade dele... Ele dirigiu o espetáculo, orientou o cenário do Clóvis
Bueno, tudo. Mas na biografia dele nunca ninguém mencionou detalhes desse
trabalho, ninguém me consultou. Nessa peça havia, por exemplo, uma cena muito
especial. O Ziembinski tinha feito uma rara viagem para o exterior, pois quase
não saía daqui, e viu, em Paris, os filmes do Andy Warhol. Ficou apaixonado
pelo ator Joe Dalessandro e por aquela coisa meio “boring”, meio dopada e
parada. E o Zimba já era conhecido e odiado desde o começo da carreira por suas
pausas e silêncios longuíssimos. Já tinha essa coisa ralentada. Então ele
queria que os personagens da peça fossem meio “vazios”, ou um tanto medíocres,
ninguém deveria fazer nada muito brilhante, uma gente comum.
A
cantora Marlene interpretava uma dona de boutique fútil, e o timing dela era o
oposto do Ziembinski, um mosquito elétrico, uma tocha humana. Tinha a Louise
Cardoso, lindíssima, com 18 anos, saída do grupo Asdrúbal. E o Roberto Pirillo
no auge da juventude. Ele era um fetiche do Ziembinski, que me pediu para
escrever uma cena longa, de uns dez minutos com o Pirillo nu, para toda noite
dessa temporada ele poder se deleitar com o objeto de desejo dele.
A
crítica não entendeu, mas as pessoas que foram à estréia adoraram, embora a
censura tenha provocado um adiamento de quatro dias -a platéia sentou, mas o
pano não abriu, e a Emilinha Borba, declarou na primeira fila: “Nossa!, a
Marlene faz qualquer coisa para chamar a atenção”. Mas depois aconteceu.
Excetuando o Tite de Lemos, que escreveu elogios em “O Globo”, foi um massacre
total. A “Veja” publicou um texto intitulado “Tristes bodas”. E o Yan
Michalski, “Quatro cabeças vazias”. Perguntavam por que eu tinha perdido meu
tempo a escrever e o Ziembinski a montar tal coisa...
Não
entendiam que era uma coisa conceitual e conceituada pelo Zimba. Se houvesse
essa compreensão, essa celebração de 50 anos não teria sido tão massacrada.
Nessa época, 1976, a crítica estava no auge do mau humor e reivindicava, em
meio à ditadura, denúncias ao regime e à tortura. Não tinha lugar para aquele
teatro.
Aliás,
quando o Plínio Marcos foi ver “Abre a Janela...”, no auge da ditadura, em 68,
no teatro Maria Della Costa, disse: “Porra! Nós estamos lutando pelo arroz com
feijão e já vem o Bivar trazendo a sobremesa!”. Eu fiquei me perguntando: “Por
que não a sobremesa?”... Eu não ia me meter a fazer uma coisa que não dominasse
e sempre gostei da comédia, desse lado absurdo da vida e do teatro. E o público
adorava. “Cordélia”, com a Norma Bengell, no teatro de Arena, foi uma comoção.
Eu
me lembro da Maysa aos prantos, ela que usava aquela maquiagem densa nos olhos,
toda derretida, escorrendo preto pela cara. A Wanderléia, a Cacilda Becker,
todas choravam naquele teatrinho apertado. A Norma, que só tinha experiência de
cinema, fez um negócio de louco, uma catarse. Era uma emoção que arrebentava, e
depois ela foi seqüestrada pelo Exército, porque declarou aos jornais que o
Galeão tinha sido vendido para os Estados Unidos, uma conversa que ela escutou
de orelhada na ponte aérea. Lembro que a peça estreou no Rio, no teatro Mesbla,
na cobertura daquele prédio, com bomba da polícia estourando, bomba de gás.
Mas a implicação da censura era com a Norma ou com o
texto?
Bivar: Eles tinham proibido a “Santidade”, do
meu amigo José Vicente, a “Barrela”, do Plínio Marcos, e a “Cordélia Brasil”.
As três peças da nova dramaturgia brasileira foram proibidas pela censura. Mas
o nosso produtor era o Luís Jasmim, um pintor que fazia retratos de princesas e
atrizes européias a bico de pena e queria ser ator, e por isso produziu a peça,
para atuar. O outro produtor era o Vianinha (Oduvaldo Viana Filho), apaixonado
pelo texto. Mas o Jasmim, que tinha dinheiro e sempre freqüentou a alta
sociedade, as madames, conhecia dona Yolanda Costa e Silva.
Então
bateu rápido um telefonema para dona Yolanda e fez um retrato dela com os
netinhos. Ela conversou com o marido e ele ligou para o Gama Filho, ministro da
Justiça. Pediram para a Norma não ir ao Ministério, porque chamava muito a
atenção da imprensa. E eu fui sozinho liberar a peça. O ministro cortou uns
oito palavrões, mas de repente substituía “sacana” por “filho da puta”, uma
coisa incompreensível. Mas eu sempre tive problemas com a censura.
Mas “Cordélia” era também uma comédia, não?
Bivar: Tinha esse lado engraçado, mas era a
tragicomédia de uma vida mesquinha, uma vida de esconder cigarros da vista do
parceiro. No mesmo ano teve a montagem de “Abre a Janela...” e ganhei todos os
prêmios. Nessa temporada, eu, a Norma, a Gilda Grillo, o José Vicente,
morávamos no hotel Amália, na rua Xavier Toledo, no centro de São Paulo.
Esse
era um Chelsea daqui, onde ficava a companhia do Paulo Autran, o Lennie Dale,
Gilberto Gil... E quando a rainha Elizabeth visitou o Brasil passou por aquela
rua com sua comitiva, num Rolls Royce conversível, toda vestida, formal, de
luvas, mas descalça, conforme a gente via de uma sacada do hotel Amália. Então
eu escrevi “A Passagem da Rainha”. A galeria Metrópole, ali perto, era o máximo
naqueles anos, com todas aquelas boates e restaurantes, a putaria, a noite e a
pegação. Tinha o Pari Bar, tinha o bar Barroquinho, do Zilco Ribeiro, que era
um diretor sofisticado de teatro de revista...
O
Mick Jagger, o Keith Richards, a Marianne Faithfull e a Anita Pallenberg ficavam
hospedados no hotel Jaraguá e passavam horas sentados no Pari Bar, à tarde, em
69. O Mick comprava aqueles colares de macumba, de metal barato. Eu via a atriz
francesa Barbara Laage, maravilhosa, por ali. Ela estava meio às traças e veio
fazer um filme com o Walter Hugo Khouri. O centro era maravilhoso naquela
época.
Como é a peça “A Passagem da Rainha”?
Bivar: Lembro que sempre convidava umas putas
e michês para assistir à “Cordélia” no teatro de Arena. Na época em que a
rainha veio fizeram uma “limpeza” nas ruas aonde ela passaria e todos aquele
conhecidos foram presos. Naquele tempo eu estava fazendo uma pesquisa e ia
muito à rua do Triunfo, a um quarto de hotelzinho onde moravam uma puta e seu
garoto. Então eu ficava olhando a penteadeira com espelho e um azulejo no qual
estava pintado: “Dizem que há mundos lá fora que nem em sonhos eu vi, mas que
importa todo o mundo, se o mundo todo é aqui?”.
Eu
achava lindo aquilo, naquele quarto sórdido, e escrevi a peça, com esse lado
das putas que a rainha não viu e de umas pessoas da comitiva da rainha que
ficam loucas com um michê que encontram na rua, alguém que tinha escapado da
“limpa”. A peça foi proibida aqui, mas quase montada em Paris, com a Micheline
Presle... Eu estava em Londres e a Gilda Grillo me convidou para ver ensaios em
Paris, quando ela e a Norma Bengell estavam exiladas lá, em 72.
A
Jeaninne Worms, autora que lia todas as peças novas daqui na época, e que
costumava receber em casa o Ionesco e o Beckett, escolheu traduzir “A Passagem
da Rainha”. O crítico do “Le Point” considerou que o texto ia mais longe que o
Sade. Eles já tinham encenado “Os Convalescentes”, do Zé Vicente, montagem para
a qual a Simone de Beauvoir escreveu o texto do programa. E eu passei um tempo
acompanhando os ensaios de “A Passagem da Rainha” em Paris.
Num
dia me ofereciam jantares maravilhosos e no outro era uma miséria danada.
Fiquei morando em Pigalle, com a cantora baiana da bossa nova Telma Soares, que
tinha saído da cadeia na Itália. Ela tinha sido pega na casa onde foi preso o
ator Pierre Clementi, que estava fumando haxixe, lembra? Todos ficaram presos
por dois anos, mas ela nem fumava, era uma inocente. A Telma tem um disco
clássico com músicas de Nelson Cavaquinho.
Ela era boa cantora?
Bivar: A Telma era boa, mas muito devagar...
A música já estava longe, e ela sempre lá atrás. Bom, em Paris eu morei até num
banheiro de três garotas francesas, e uma delas hoje é estrela, a Anémone
Bourguignon. Aí vim para o Brasil dirigir shows, enquanto em Paris a Gilda
Grillo e a Danda Prado entravam de cabeça na coisa feminista, ficando amigas da
Delphine Seyrig e não sei mais o quê. Nunca mais ouvi falar dessa montagem da
“Passagem da Rainha”. Nos anos 80, em São Paulo, fizeram uma montagem
deplorável no Bixiga, com a Nilda Maria -ótima atriz ótima, que havia sido
torturada- e com a Bronie, que era modelo conhecida.
A crítica ainda te atacava?
Bivar: A Marta Góes deu uma crítica ótima na
“Istoé”. Mas o Sábato Magaldi foi ver num dia em que não tinha quase ninguém.
Só estavam umas poucas pessoas e a Formiga, uma travesti que morava embaixo do
Minhocão, além de várias outras travestis. Eu estava ali pela porta do teatro,
com a mãe do Branco Melo, que era a administradora, e a gente resolveu colocar
todas pra dentro. Toda vez que entrava uma atriz no palco as travecas sentadas
atrás do Sábato diziam, em coro, com aquelas vozinhas de papagaio: “Arrasou!”.
Foi um desastre, ele escreveu que eu era um mito que se desfazia.
Alvaro Machado
É jornalista, colaborador da "Folha de S. Paulo", autor de "A Sabedoria dos Animais" (ed. Ground), tradutor de “A Linguagem dos Pássaros” (ed. Attar) e organizador de "Aleksandr Sokúrov" (ed. Cosac & Naify) e de "Mestres-Artesãos" (ed. Sesc-SP). Coordena o site-catálogo da editora Cosac & Naify (www.cosacnaify.com.br).
É jornalista, colaborador da "Folha de S. Paulo", autor de "A Sabedoria dos Animais" (ed. Ground), tradutor de “A Linguagem dos Pássaros” (ed. Attar) e organizador de "Aleksandr Sokúrov" (ed. Cosac & Naify) e de "Mestres-Artesãos" (ed. Sesc-SP). Coordena o site-catálogo da editora Cosac & Naify (www.cosacnaify.com.br).
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