MARCAS DA VIDA
James Baldwin
Sempre
acreditei que fosse a minha historia. Comecei a ler quando num domingo de dor,
pela manha, fizera uns dois dias que havíamos enterrado nosso querido irmão,
Jorge Bosco Viana, morto aos 19 anos em Belo Horizonte. Não sabia bem o que fazer
naquele final de 1982. Como tudo era vazio, sem cor, terrível. Lua, sol, céus,
estrelas, nada. Nem nada, nada. Apenas o vazio insistente de quem tem sua
primeira grande perda. Depois vieram outras, aos milhares e fui aprendendo.
Agora nem dói tanto, mas ainda dói, o suficiente para me paralisar. Então, dias
depois, cheguei a este texto; aturdido e maravilhado, virou referencia nas minhas
reflexões e literatura. É um excerto, uma copia das paginas 69 a 71
, da
edição 1978, 1979 – Nova Fronteira. MARCAS DA VIDA é uma lenda do celebrado e
comprometido ativista negro, James Baldwin, apreciem...
...Que eram cantados pelo povo nos
tempos antigos ao som de instrumentos musicais para que aqueles sons cheios de
alegria, os salmos, chegassem aos ouvidos do Senhor. Essas foram as palavras de
Davi, sabem quem era Davi? Bem, Davi saiu certo dia à procura daquele gigante
malvado, à procura daquele gigante enorme, de aparência aterradora e má, que
todos tanto receavam, um gigante chamado Golias. O pequeno Davi saiu à sua
procura com uma funda e acertou o gigante malvado! Ainda não sabem quem era
Davi? Era um pastor que alimentava as ovelhas famintas! Ouço alguém a perguntar
quem era esse Davi, a pedir que fale mais sobre ele. Bem, Davi era Rei - era
chamado o Rei Davi, e o povo se curvava em respeito a ele. Ah, sim! Ouço alguém
a perguntar quem era esse Davi. Bem, deixem-me dizer-lhes, esse Davi tinha um
filho que fugiu pela floresta tentando ocultar-se da ira do Senhor, e tinha um
cabelo longo belo; creio que tinha muito orgulho do cabelo, e o Senhor fez com
que todo aquele lindo cabelo se emaranhasse nas ramagens, nos arbustos e nos
galhos das árvores da floresta, onde o
filho de Davi terminou por morrer, tentando ocultar-se da ira do Senhor, e
ouvimos o Rei Davi ajoelhado, chorando como uma criança, fiéis, posso ouvi-lo a
chorar, fiéis, sois capazes de ouvi-lo a chorar, o Rei Davi humildemente de
joelhos, a chora, oh, meu Deus quem me dera ter morrido em lugar do meu filho,
quem me dera ter morrido em lugar do meu filho, ah, ouçam o Rei Davi a chora,
meu filho, filho meu! Agora querem saber sobre o Rei Davi? Creio que vou
falar um pouco mais sobre o Rei Davi essa
manhã! O Senhor pôs as mãos sobre Davi - da casa de Davi vem o nosso Salvador,
Cristo, nosso Senhor.
O que quer que ela fazia, certamente não se tratava de
logro: e a igreja parecia prestes a elevar-se ao encontro de Jesus. Não era capaz
de andar de um lado para outro no púlpito como um pregador adulto, pois não
ficaria visível se descesse da caixa. Mesmo assim, movia-se como poucos, os
olhos, as mãos, os ombros, o pescoço a pulsar e a voz que não parecia a de uma
garotinha de nove anos de idade. Para mim havia algo de amedrontador, tão
amedrontador como ouvir as pedras falarem
ou presenciar a ressurreição um morto. Porque se o morto pode ser ressuscitado,
a voz dessa criança seria capaz de faze-lo mas quem quer presenciar a ressurreição dos
mortos?
E enquanto ela falava a igreja respondia: Amém! E bradava: bendito seja
o Vosso nome! e Santo, Santo! E falai, Senhor Jesus! Mas quando ela parava a
igreja parava, envolvida num terrível silêncio, a música irrompendo como uma
tempestade.
O pai e a mãe, parados, o pequeno Jimmy, quieto, Arthur sentado,
empertigado, a boca aberta, os olhos espantados.
– Agora têm noção de quem era
Davi? Foi aquele que desse: Bendito seja
o Senhor que engrandeceu Sua misericórdia para comigo numa cidade sitiada! Ah,
numa cidade sitiada! Davi foi aquele que disse: O Senhor é meu pastor, nada me
faltará...! Davi era um pastor e creio que um bom pastor, pois não permitia que
seu rebanho ficasse faminto, e daí ele dizer: nada me faltará
- nem mesmo nessa
cidade sitiada! Ah, fiéis, creio que ele provou do pão da amargura algumas vezes.
Creio que posso ouvi-lo esta manhã “Elevo os meus olhos para o monte de onde
virá o meu socorro”. Creio que posso ouvi-lo a dizer, esta manhã: “Não te indignes
por causa dos malfeitores”- fiéis, sois capazes de ouvi-lo? Nesta cidade
sitiada. Ah, sim, creio que posso ouvi-lo a dizer que “aquele que habita no
esconderijo do Altíssimo, á sombra do Onipotente, descansará”, ah sim, bem aqui
nesta cidade sitiada! Creio que posso vê-lo olhando para Jesus, amém, clamando:
“Meu Deus, por que me abandonastes?” Nesta cidade sitiada. Creio que posso
vê-lo a andar nas ruas, nos metrôs, limpando o chão, amém! Nesta cidade
sitiada, e esvaziando as latas de lixo e dizendo: Sim senhor; Sim senhora.
Nesta cidade sitiada, creio que posso ouvir seus filhos chorando por pão nesta
cidade sitiada; creio que posso ouvir o riso malvado desta cidade sitiado, como
Golias deve ter rido ao ver aquele menino apenas com uma funda, ah, sim, rindo
antes de ir ao encontro do seu criador, ah, sim, melhor será não rires do ungido
do Senhor, melhor não haver risos diante do trono do juízo final.. Um dia...
Meu coração clamou e a igreja, em silêncio, clamou.
- ... um dia, acordaremos
nesta cidade sitiada e presenciaremos a salvação divina! Nossos filhos não
terão mais fome, nunca mais! Não veremos os anciãos tortos de reumatismo,
lágrimas a lhe rolarem pelas faces – nunca mais! Bendito seja o senhor! Que
engradeceu Sua misericórdia para comigo numa cidade sitiada! Esta cidade
sitiada...Ah, ouço outra voz esta manhã dizendo que “se o Senhor não guardar a
cidade, em vão vigia a sentinela!” Não podem
ouvir essa voz, esta manhã, fiéis? Ouço Davi a dizer: “Batei palmas, ‘todos,
batei palmas” Ouço Davi a dizer: “Celebrai a Deus com vozes de júbilo.” E agora
creio ouvir um dos parentes de Davi, o velho Irmão Josué, andando pelas
muralhas da cidade sitiada, tocando a trombeta fora das muralhas da cidade
sitiada, e ouço alguém a dizer como ruía as muralhas da cidade. Daquela cidade
sitiada. Ouço Davi dizendo novamente: “Levantai, ó portas, as vossas cabeças,
levantai-vos, ó portais eternos, para que entre o Rei da Glória.” Ouço alguém a
cantar, calmei...!
Minha voz e a igreja responderam:
- E Ele me enviou.
–
Clamei!
- E Ele me enviou.
- clamei!
- E Ele me enviou. Enviou minha pobre alma.
O
piso sob os meus pés tremeu, as próprias paredes pareciam balançar e uma
tempestade eclodiu num troar de mãos e pés e na fúria do piano, no tropel- como
cavalo!- dos padeiros, e o povo começou a grita. Júlia, permanecendo no mesmo
lugar, a olhar, como uma alta sacerdotisa. Ela provocara essa tempestade ou a
deixara fluir de si, mas nem cantava nem gritava, os olhos parecendo fitar o
Egito. O pai subiu ao púlpito, aproximou-se dela e enxugou- lhe a testa – e, sim, nesse momento via-se que
ele a amava- levando-a para longe dos olhares, para o trono real lá em cima.
Este mesmo pai a estrupa
quando da morte de sua esposa. A menina se apaixona pelo pai e ajuda a matar a mãe,
que sabendo de tudo amaldiçoa a filha, entregando-lhe os cuidados do irmão rejeitado,
que se tornara amante do cantor Artur. É uma historia lindos, um libelo, um
elogio a sociedade americana e suas contradições. E ainda é, em parte, a minha
historia.
É uma historia de vida e um acervo maravilhoso, de gente e de coração.
No comments:
Post a Comment