Sunday, November 13, 2016

Amor, amor, amor



Escolho amar outros homens gays negros








 
Se tomarmos a grande mídia como referência,  é fácil imaginar que o amor romântico entre dois homens gays negros praticamente não existe. Exemplos famosos disso são os jogadores Michael Sam e Derrick Gordon que tem parceiros brancos e, mais recentemente, o personagem central na trama do seriado Empire (do também preto Lee Daniels) que tem um namorado mexicano facilmente lido como branco. Sinceramente, quando os poucos modelos de homens negros gays bem sucedidos estão atados a pares brancos, acredito que a mensagem implícita nesses casais é que o amor entre nós é inexistente. E, irritantemente, o debate acerca desse amor se pauta na branquitude, e não no amor entre nossos iguais.

Acho que precisamos falar sobre o amor entre nós mesmos, porque, infelizmente, a impossibilidade de um amor gay negro não é um conceito apenas da mídia mas entre gays negros também. Não é necessário ir muito além dos aplicativos de pegação para detectarmos negros cheios de auto-ódio. Perfis que mais parecem tratados de fronteira do que as atraentes chamadas que elas deveriam ser. Frases tais como: “não curto afeminados” ou “só transo com pretos machos de verdade” são usadas como carimbos de passaporte que restringem as possibilidades de pareamento.

Contudo, embora a mídia faça parecer que negros gays – especialmente os ricos e graduados –  só encontram segurança e conforto em braços brancos, tenho dificuldades para pensar em algum tipo de relacionamento – não fisicamente abusivo – capaz de provocar em mim maior estranhamento e preocupação. Meus envolvimentos amorosos não deveriam ser uma situação onde me pergunte se sou fetiche de alguém, ou onde eu precise explicar as nuances da minha vivência cultural, assim como os traumas sociais com que lido diariamente desde que nasci. Não estou dizendo que relações interraciais devem ser evitadas. Não sou contra esse tipo de amor, apenas pró-afrocentramento.

Acredito que por sermos gays e negros, temos que ser zelosos com nossas escolhas românticas. Justamente porque vivemos numa sociedade que condena como e quem escolhemos amar. Portanto, escolher amar outros homens negros é tanto um ato de amor próprio quanto de resistência política. Como definiria Joseph Beam, se trata de um ato revolucionário – apesar de bastante dificultoso. Porque ser um homem negro gay que escolhe amar outro igual, significa que temos que amar superando os danos psicológicos e emocionais que o mundo nos impôs.

Na minha vida, o tipo de amor que mais me fez bem foi o amor entre negr@s. Quando era um garoto no subúrbio de Detroit, os referenciais de amor que me eram mais visíveis e notórios eram os afrocentrados. O amor por vezes ríspido, porém honesto e magnânimo afeto de mulheres negras, o problemático e teatral amor de homens negros e o afiado, vibrante e enérgico amor que recebi dos meus colegas. Embora não haja uma noção única do que seja o amor negro que seja pura e pleno, todas as vezes em que eu experimentei amor na sua forma mais radical e edificante a outra pessoa era negra. Um tipo de amor que entende o que significa ser descendente de escrav@s, sujeito aos traumas do passado e do presente que se desencadearam a partir disso, mas ainda assim persistir nessa vida com “paixão, compaixão, humor e estilo“.

Pra ser honesto, boa parte da força que encontrei no amor que recebi de negros veio de mulheres. Quando os homens negros mais velhos da minha vida tentavam demonstrar afeição por mim sempre era atravessado por algum tipo de provocação ou agressividade. Depois de adulto, na comunidade gay negra, não faltam exemplos de gongação e noções patriarcais de masculinidade, mas também vivenciei grandes amores românticos e platônicos com outros gays negros. Como o primeiro cara que me levou pra fazer exame de HIV, aqueles que me consolaram quando passei por problemas na minha família, que se esbaldaram comigo na pista de dança, e que demonstram adoração totalmente desinteressada por mim, ainda que esses relacionamentos não tenha durado muito tempo.

Então, ao invés de focarmos nas dificuldade inevitáveis nas relações homofoafetivas entre negros, talvez seja a hora de reorganizarmos a maneira que tendemos a encarar o assunto. Podemos começar questionando o que significa para dois homens se amarem numa sociedade na qual são ensinados a não expressar esse afeto. O que significa escolher amar outro homem negro quando os corpos de quem amamos estão sujeitos a atos desproporcionais de violência, pobreza e inúmeras desigualdades? O que significa amar outro homem gay quando o amor entre negr@s  já é tão carregado de descrença? Uma forma de amor que considerada inexistente, sem modelos onde se espelhar visto que nos dizem que no início era Adão e Eva e não Adão e Ivo.

Apesar de todo o auto-desprezo e das pouquíssimas chances de dar certo, escolho amar romanticamente uma bicha nagô. Faço isso porque acredito que amar é um ato político, e que se realmente nos amamos e queremos mudar a nossa comunidade, devemos nos vermos representados nela. Se algum dia, por alguma razão desconhecida eu me encontrar num relacionamento tradicional e mainstream, é sem peso na consciência que eu faço questão de que seja com outro negro. E essa intenção não se trata somente de afeto e amor, mas sim uma decisão política. Numa sociedade que invisibiliza a homoafetividade negra, e que investe bastante tempo focando para os poucos gays negros de destaque sejam visto com um branco a tira colo, eu escolho afrocentar. Amar alguém tal como eu sou. Amar outro ser que também resiste nesse país que silencia nossas reflexões.

Wednesday, October 26, 2016

Trem das Cores, Caetano!

Trem Das Cores



para quem ama a poesia e vê a beleza
para os amantes do bom português,
É lindo demais, trem das cores







A franja na encosta cor de laranja, capim rosa chá
O mel desses olhos luz, mel de cor ímpar
O ouro ainda não bem verde da serra, a prata do trem
A lua e a estrela, anel de turquesa
Os átomos todos dançam, madruga, reluz neblina
Crianças cor de romã entram no vagão
O oliva da nuvem chumbo ficando pra trás da manhã
E a seda azul do papel que envolve a maçã
As casas tão verde e rosa que vão passando ao nos ver passar
Os dois lados da janela
E aquela num tom de azul quase inexistente, azul que não há
Azul que é pura memória de algum lugar
Teu cabelo preto, explícito objeto, castanhos lábios
Ou pra ser exato, lábios cor de açaí
E aqui, trem das cores, sábios projetos: Tocar na central
E o céu de um azul celeste celestial


Saturday, October 01, 2016

Beleza Pura!



BELEZA PURA

A DIVINA ELEGIA DE CAETANO VELOSO AOS NEGROS. A FORMOSURA NEGRA. É BELÍSSIMA!



Wednesday, September 21, 2016

Momentos históricos de muita saudade



Histórias e confidências de Antonio Bivar
Por Alvaro Machado

Vânia Toledo

Exclusiva: o que o Brasil nesses anos todos? Este era nosso país, nossa cultura. É demais, leiam.
O dramaturgo da marginália brasileira hoje frequenta a sociedade literária inglesa
Dizer que Antonio Bivar, 63, é um dos três autores que renovaram a dramaturgia brasileira no final dos anos 60 e início dos 70, ao lado de Plínio Marcos e José Vicente, não é nenhum exagero. Com peças como “Alzira Power” e “Cordélia Brasil”, seu público à época foi tão grande ou maior que o de Plínio Marcos. Mas é ainda dizer pouco, pois desde então o autor marcou presença em outros círculos culturais, além de honrar bastante sua forte vocação de viajante.
Ex-andarilho contumaz, principalmente nas cidades onde morou (Rio, São Paulo e Londres), hoje o escritor costuma submergir entre quatro paredes para temporadas de leituras que duram semanas. Atende a poucos convites, embora esses sejam muitos, pois amigos e conhecidos não esquecem seu encanto pessoal e maneiras de gentleman.
À parte o fato de ele ser um notável “causeur” -misturando épocas, nomes e estilos com efeito devastador- o que provoca a unanimidade que elege Antônio Bivar uma pessoa tão adorável?
Parte da imantação atual de Antônio Bivar origina-se, com certeza, em seu talento para apagar fronteiras e preconceitos. O autor de clássicos nos quais exuberantes e solitárias senhoras da classe média trocam figurinhas com excluídos urbanos expressa-se em mescla singular de “witty”, perspicácia à inglesa, e ingenuidade e simplicidade franciscanas.
Gosta de observar detalhes absurdos da decadente região central de São Paulo, onde mora, e mantém correspondência com a intelectualidade londrina mais refinada, na condição de único membro brasileiro da International Virginia Woolf Society. Privou da amizade do sobrinho e biógrafo de Virginia, o escritor Quentin Bell (1910-96), ao mesmo tempo que ajudava a organizar festivais musicais para punks da periferia de São Paulo e do ABC. Comparece anualmente a encontros na fazenda Charleston, a uma hora de Londres, com a nata dos escritores de língua inglesa, e passa fins de semana bucólicos em Ribeirão Preto, onde parte de sua família se radicou.
Bivar tem atuado também com escritor de biografias e jornalista cultural. É sua, por exemplo, a reportagem de capa da revista “Trip” de outubro último, com um texto entusiasmado sobre a história do punk no Brasil, que tem um marco no festival “O Começo do Fim do Mundo”, de 1982, no Sesc Pompéia (São Paulo), por ele idealizado.
Ainda neste ano a editora LP&M reedita seu volume de memórias “Verdes Vales do Fim do Mundo”, de 85, e a Secretaria de Estado da Cultura do Paraná lança pequena tiragem de uma reunião de suas três principais peças, jóias de brilho duradouro. Enquanto isso, a Brasiliense reedita seus livros “O Que é Punk” (82) e “James Dean” (84), e o autor escreve, para a mesma editora, breves monografias sobre Jack Kerouac e Virginia Woolf.
Entusiasmado com o festival de música e cultura punk que ajudou a organizar em novembro e que marcou 20 anos do festival punk no Sesc Pompéia, Bivar se diz “renovado” a cada reencontro com esses amigos músicos. Não importa a facção a que pertençam, os punks paulistas o respeitam como a um guru beat -fato raro nos tempos atuais de pós-adolescentes parricidas. Sua entrevista para Trópico começa, justamente, com esse mergulho na força punk, para revisitar depois os dias do exílio europeu, 1970-72.

Como foi o último festival de música e cultura punk, que vocês chamaram “O Fim do Mundo”?
Antônio Bivar: Foi o fecho da trilogia “Fim do Mundo”. O primeiro festival, de 82, no Sesc Pompéia, chamou-se o “O Começo do Fim do Mundo”, e no ano passado teve “A Um Passo do Fim do Mundo”, já no Tendal da Lapa. Comparecem umas 8.000 pessoas, e isso sem divulgação nos jornais, só pela internet.
Acho que os punks são o primeiro movimento pós-moderno no mundo. É uma cultura anarquista internacional que influenciou tudo, um divisor de águas. No Brasil deu uma grande arrancada. É a cara de São Paulo, apesar do nome importado. É um movimento de grande paixão e celebração, de irmandade, que remete ao anarquismo de 1917 em São Paulo. Neste ano tivemos 64 bandas, desde as mais antigas, como Cólera, Fogo Cruzado e Lixomania, até as novíssimas, como a Holly Tree -que agora vai excursionar pela Europa-, Flicts, Lambrusco Kids, General Bacon e outras.
Musicalmente, o movimento está muito melhor agora, mais criativo. Apesar de nas bandas existir hoje em dia até gente que estudou na Faap, como os integrantes do Holly Tree, todos vêm da classe média baixa. Para mim, os fatores mais positivos do punk são a insubordinação e a criatividade do “faça você mesmo”, porque eles conseguem fazer de tudo com os elementos mais básicos.
Como você começou a se interessar pelo punk?
Bivar: Na década de 80 passei um outro ano na Inglaterra e acompanhei o movimento musical. Então, em 82, escrevi o pequeno volume “O Que é Punk”, para a editora Brasiliense, e tive a idéia de fazer um festival de música e cultura punk no Sesc Pompéia. Foi um sucesso louco, com repercussão em jornais de Washington, do Japão... São Paulo ficou parecendo a Meca punk, foi um impacto.
Lembro-me de Lina Bo Bardi (arquiteta do Sesc Pompéia) com aquele penteado tapa-olho, parada ali com cara de brava... A meu pedido, ela colocou uma rotunda preta no palco, para esconder uma faixa do Zizinho Papa, político malufista que estava na direção do Sesc e que os punks odiavam. Ela me perguntou: “Bivar, mas esses punks não são uns fascistas?”. E eu respondi, bem calmo: “Não, dona Lina, eles são anarquistas”. Então ela deu um jeito de colocar o pano preto sobre a faixa do político.
Esse primeiro encontro é um mito entre os punks, e para mim foi um grande e maravilhoso teatro. Ninguém ganhou um centavo. Já em 98 fui chamado pela Secretaria da Cultura de Santo André e pelo Motim Punk da cidade para escrever uma ópera punk sobre a briga entre as facções do ABC e de São Paulo. Trabalhei oito meses. Pegava o trem para Santo André na Estação da Luz, foi ótimo.
Houve uma época em que você escrevia regularmente na imprensa e fazia longas entrevistas com artistas e escritores brasileiros. Qual foi a última?
Bivar: Fiz muita coisa para a extinta revista “A-Z”, onde eu era “editor de estilo”, aliás coisa que inventei. Lá também trabalhava o Caio Fernando Abreu. Eu escrevia com uns dez pseudônimos, entre eles o de Sra. Lisandro Deprê, que era assim a mais lida e querida. Às vezes escrevia o número quase inteiro. A última entrevista foi com a Aracy de Almeida, pouco antes de ela morrer. Ela morava no hotel Alvear, no centro de São Paulo, e trabalhava como profissional de júri do Sílvio Santos. Não queria dar entrevista, cobrou, mandou dizer que “não estava com saco”... Mas no fim rolou uma coisa entusiasmada.
Entrevistou escritores também?
Bivar: Gostei de entrevistar, durante vários dias, a Cassandra Rios. Foi para a revista feminina “Nova”, em 80, mas acabou não saindo, porque os editores acharam que eu só colocava a Cassandra para cima. A Cassandra escrevia bem. Li quase todos os livros dela antes de fazer a entrevista. Ela também morava no centro, na rua Cesário Motta Jr., num apartamento pequeno como uma casa de bonecas. Mas sempre escondia o lado gay e dissimulava, apesar de estar sempre em companhia de uma moça chamada Vera.
Quem também gostava de ler as coisas dela era o Jorge Amado. Outro que gostava era o autor do livro “Como Era Verde o Meu Vale”, o galês Richard Llewellyn, que morou no sul do Brasil e foi publicado pela editora Globo. Esse livro foi comprado pela Metro, que filmou com direção de John Ford, em 1941. Na infância eu adorava o filme, que citei num título de um livro: “Verdes Vales do Fim do Mundo”.
Mas, voltando à Cassandra, eu dirigi o show “Drama” da Maria Bethânia, em 73. A Bethânia adorava a Cassandra, que estava na lista de convidados da estréia do espetáculo em São Paulo. A escritora chegou com um pacote de suas novas edições, todas best sellers, e a Bethânia, que quando era adolescente lia escondido os seus livros na Bahia, ficou felicíssima.
Nós também líamos a Cassandra escondido...
Bivar: Não! Em adolescente eu lia “A Carne”, do Júlio Ribeiro, da biblioteca de um tio, enquanto me masturbava trepado em uma jabuticabeira da fazenda.
E da Adelaide Carraro, você gostava?
Bivar: Nem tanto. A Adelaide era rival da Cassandra, mas também “explodiu”. A Cassandra me declarou “off the records” que era ela quem reescrevia todos os livros da Adelaide Carraro, embora elas se detestassem. Parece que eram da mesma editora... Interessante: eu imaginava mesmo a Adelaide como uma “sub-Cassandra”. Depois a Cassandra comprou uma casa pré-fabricada em um desses lugares perto de São Paulo e sumiu.
Meses atrás eu estava num vernissage da Pinacoteca do Estado e apareceu uma astróloga lésbica bem conhecida, que mora em Berkeley. Ela acabava de chegar de uma reunião com a Danda Prado (Yolanda Prado), da editora Brasiliense, e a Cassandra Rios. Essa astróloga me mostrou a autobiografia da Cassandra, que tinha acabado de sair. Ela estava numa fase tão boa e, de repente, morreu, neste ano...
Você se sente velho quando essas pessoas morrem?
Bivar: Eu não! Velhíssima eu achei agora a Maggie Smith no filme “Gosford Park”, de Altman. Eu assisti a três peças com a Maggie em Londres. A primeira foi “Hedda Gabler”, em 70, dirigida pelo Ingmar Bergman. Depois em 81, ela fez a Virginia Woolf no palco, em “Virginia”, peça da irlandesa Edna O’Brien. E em 90 eu a vi em “A Importância de Ser Prudente”, de Oscar Wilde. Sempre uma atriz maravilhosa.
Fale do livro de memórias “Os Verdes Vales do Fim do Mundo”, que está sendo republicado agora pela LP&M de Porto Alegre.
Bivar: É da época do desbunde, do exílio, Londres, 1970 e 1971, e descreve exatamente isso. Aparecem muito a Helena Ignez, o Rogério Sganzerla, Julinho Bressane, o Jorge Mautner, Caetano, Zé Vicente, Leilah Assumpção, Antônio Peticov, essa turma, a comunidade pop na época da ditadura brasileira.
Os mais politizados iam naquela época para Paris ou para a Itália, como Chico Buarque, Cacá Diegues, Nara Leão... E a turma pop ia para Londres. Havia também um pessoal em Nova York: Rubens Gerchmann, Mautner... Esse livro saiu primeiro em 85, que foi uma década boa para os autores, de renascimento brasileiro, já sem o ranço hippie. Foi quando traduziram os autores beat dos anos 40 e 50: Kerouac, Burroughs e outros.
Você traduziu livros desses autores?
Bivar: Sim, o “On the Road”, do Kerouac, em parceria com o Eduardo Bueno, que na época era muito garoto e muito ambicioso... Fui convidado para revisar a tradução dele e vi que tinha de reescrever. Mas fiquei muito decepcionado com a idéia da tradução para editoras, porque eu tinha aquela noção do trabalho de escritores como Cecília Meireles, Mário Quintana e Manuel Bandeira, que praticamente reescreviam os clássicos. Já na minha época, a editora vinha arrancar a página da máquina de escrever.
Mas voltando a “Verdes Vales”...
Bivar: É um texto de muita sinceridade e até hoje vale por isso. Em 95 publiquei o “lado B” desse livro, que narrava o ano seguinte, de 72, também passado no exílio: “Longe Daqui, Aqui Mesmo”. Sempre gostei de autores que escrevem como adolescentes ou colegiais, com linguagem sincera, quase de criança.
“Longe Daqui, Aqui Mesmo” é um título que vem de uma peça minha, que o Antônio Abujamra dirigiu com a vedete Nélia Paula. Escrevi essa peça em Nova York, no hotel Chelsea, onde oito anos depois o Sid Vicious mataria a Nancy Spungen e onde tanta coisa aconteceu. Nesse mesmo hotel moraram Mark Twain e Arthur Miller. O Jorge Mautner era massagista de um paraplégico riquíssimo, que tinha uma suíte no hotel, com as paredes forradas de Degas, Warhol, Modigliani... O Mautner vivia com a mulher e o pai numa suíte anexa à do paraplégico, e quando esse homem foi passar uns meses na fazenda que tinha no Novo México, Mautner e família mudaram-se para a grande suíte, enquanto eu fiquei na pequena.
No Chelsea circulavam as celebridades da esquerda e do underground: eu subia no elevador com a Jane Fonda acompanhada dos black panthers... Foi uma época engraçada, na qual eu aprendi, depois de algum ácido que foi decisivo, a abandonar todas as bagagens e assumir um olhar ingênuo, franciscano... Aprendi a não ter preconceito e a conviver e me encantar com todos os lados da vida, com todos os mundos. De repente você está perto da aristocracia inglesa, de repente com o lúmpen, com os punks.
Nos anos 60 e 70 essas aproximações pareciam possíveis. Agora as coisas parecem não se misturar e você quase não tem acesso a esses mundos.


Bivar: Sim, isso era mais espontâneo lá atrás. Agora voltou um complexo de inferioridade muito forte nas pessoas, de classe, por causa exclusivamente de dinheiro, uma coisa que eu vejo muito em São Paulo e que machuca muito. Antes ninguém fazia questionário sobre sua condição social para começar um diálogo, e as coisas dependiam muito de você mesmo, do seu talento, da sua comunicabilidade. Agora existe esse isolamento...
Eu me lembro, por exemplo, de conversar longamente com o filho que a Elizabeth Taylor teve com o Michael Wilding. Era um hippie bem remendado. Na Inglaterra dos anos 60 a gente se internava nos “ashrams” (retiro hinduísta) e ficava do lado da princesa não sei de onde e de gente riquíssima, mas ninguém ligava muito para isso.
Qual foi a repercussão de sua peça “Alzira Power”?
Bivar: Foi um estouro, com a Yolanda Cardoso e o Marcelo Picchi. “Alzira” foi considerada, na época, uma peça feminista. Até hoje eu encontro umas mulheres loucas que dizem: “Olha, sua peça me liberou!”. Escrita em 69, a “Alzira” nunca deixou de ser remontada, no Brasil inteiro. Foi feita até em Serra Pelada!
Como você sabe disso?
Bivar: Porque eu recebi os cartazes. Foi com uma drag queen do Belém do Pará, que depois refez a montagem em São Paulo, na boate Madame Satã. Também foi feita em Portugal, na Inglaterra e na Argentina com a Delma Ricci... Essa Delma era uma espécie de Eliana do cinema argentino dos anos 50.
Tua ligação com a Inglaterra é algo regular e você tem comparecido a muitos encontros com literatos que estudam a atividade do grupo Bloomsbury, de Virginia Woolf. Como isso tudo começou?
Bivar: Foi por causa de um livro que encontrei casualmente num apartamento em São Paulo, enquanto dirigia um show para a Rita Lee. Para começar do começo: quando eu voltei de Londres para o Rio a Bethânia apareceu na casa da poeta e dramaturga Isabel Câmara e pediu que dirigíssemos um show para ela, que foi o “Drama”.
Depois disso a Rita Lee saiu dos Mutantes e me chamou para dirigir o primeiro show da carreira solo dela, “Atrás do Porto Tem uma Cidade”, com o grupo Tutti Fruti, e essa foi a primeira temporada de rock num teatro brasileiro, tipo dois meses, de terça a domingo, no Teatro Ruth Escobar, uma revelação... Mas os meninos não sabiam tocar direito e demoravam um tempão, entre um número e outro, reafinando os instrumentos. Então nesse intervalo eu fiz uma coisa meio Factory, Andy Warhol, projetando nos cenários uns filmes pops em super 8 do Abraão Berman e também reproduções de fotos de números antigos da revista “Cinelândia”.
Era uma coisa “high camp”, como diziam uns ingleses que foram assistir. Eu estava embebido de Roxy Music, Brian Ferry, Lou Reed, David Bowie, enfim do “glamour rock”. E ficou aquela coisa de “nova efeminação”, cínica e engraçada.
A Rita tinha aquele corpo andrógino, mas não gostava da música glitter. Ela venerava o Emerson, Lake and Palmer. Mas a gente conseguiu cortar o cabelo da Rita à la Bowie. Depois trabalhei com ela outras vezes, em programas de rádio, no “TVLeezão” da MTV, de 91... Eu a considero uma atriz do nível de Cacilda Becker. Quando voltei do show “Atrás do Porto” para o Rio, a Bethânia me deu uma bronca: “Sim senhor, seu Antônio Bivar! Depois de dirigir uma estrela do meu nível foi trabalhar com dona Rita Lee...” (risos).
Mas, para responder finalmente à tua pergunta sobre as viagens mais recentes à Inglaterra, tudo começou quando eu ensaiava esse show da Rita e morava num apartamento da rua Santo Antônio, em São Paulo. Nesse lugar, eu descobri um livro da Virginia Woolf, “As Ondas”. Fui imediatamente nocauteado pelo estilo e passei a ler tudo, traduzido ou em inglês.
A partir de 91 comecei a ir para os lugares onde ela tinha morado, para a Cornualha, para St. Ives, onde ela passou a infância, ainda no século 19. E fiz todo o roteiro da vida dela. Sempre me identifiquei com o humor e os pinotes de sua narrativa, com essa “ciclotimia”, que eu adotei bastante e que você percebe mesmo nesta entrevista. Em 93 eu estava abrindo um volume dela numa livraria em Londres e caiu um folheto falando de uma Summer School na Fazenda Charleston, onde moraram os pintores pós-impressionistas ingleses Duncan Grant e Vanessa Bell, e também Maynard Keynes -que escreveu lá “As Conseqüências Econômicas da Paz”-, Lytton Strachey -que aparece no filme “Carrington”.... Então implorei para ser aceito lá, entre 21 pessoas, acadêmicos europeus e americanos. Fui e eles gostaram muito.
Um dia fomos à casa do Quentin Bell, o sobrinho da Virginia Woolf e autor da biografia clássica da escritora. Ele passou a infância na fazenda Charleston. Sua mulher, Olivier (Anne Olivier Bell), me disse ao final do encontro: “Ele quer ter ‘intimacy’ com você”. No sentido de que ele queria privar uma amizade intelectual comigo, por afinidades. Então tivemos uma longa correspondência, voltei para visitá-lo diversas vezes e também fiz uma longa entrevista.
Ele morreu em dezembro de 96 e fiquei com umas 20 cartas dele para mim, bastante longas. No ano passado fui convidado por sua viúva para ficar na casa deles durante o festival de Charleston. E outro dia vi na internet uma coisa curiosamente ligada a meu nome e ao dele: “The Quentin Bell Papers”. Porque depois de sua morte as minhas cartas para ele e seus demais papéis foram doados à Universidade de Sussex. Achei muito chique. Se eu morrer aqui, amanhã, quem da USP vai procurar catalogar as coisas que fiz? Quem vai procurar meus diários? Ninguém.
Você tem muitos diários?
Bivar: Uns 40 volumes. Desde o show da Bethânia de 73, porque antes eu queimava. Nunca tive lugar muito fixo, morando aqui e lá. Por isso eu ia às vezes para um terreno baldio e queimava tudo.
E o que você produziu de literário a partir das viagens de estudos sobre o Bloomsbury?
Bivar: Achei que pudesse fazer um livro a partir de meu primeiro diário de Charleston, de 93. Ofereci ao Luiz Schwarcz, que era meu amigo na época da Brasiliense, mas ele sugeriu fazer uma ficção. Aí desanimei e nunca trabalhei isso. Tenho cinco diários, de todas as vezes que estive nesses encontros, das escolas de verão ou dos festivais literários, ao qual comparecem umas 150 pessoas.
Fiz algumas entrevistas, com o Harold Pinter, por exemplo, e com escritores norte-americanos. No ano passado, no calor do verão inglês, as vacas mugindo e aquele cheiro de estrume, o Pinter leu uma peça dele, fazendo todos os personagens, numa tenda simpática. Sua mulher, lady Antonia Fraser, também deu uma palestra: “Glamour e Guilhotina”. E o Michael Cunningham falou sobre seu livro “As Horas”, publicado aqui pela Companhia das Letras e que ganhou o prêmio Pulitzer nos EUA... Agora fizeram o filme “As Horas”, com Nicole Kidman e Meryl Streep.
Saí para jantar com Cunningham quando ele esteve no Brasil, e fiquei sabendo que esse livro surgiu de sua paixão adolescente pelo livro “Mrs. Dalloway”, de Virginia. Porque “Mrs. Dalloway” era para ser chamado “As Horas”. Ele veio para cá com um caso dele, que é médico. Nunca tinha estado em Charleston, mas eu falei tanto, que no ano seguinte ele estava lá. Nesse ano, enquanto ele fazia uma palestra sobre “As Horas”, perguntei subitamente da platéia: “Quem vai fazer a Virginia Woolf no filme?”. Fez-se aquele silêncio... Ele pediu para todos permanecerem calmos e disse: “Nicole Kidman”.
Bem, ela é uma das maiores estrelas atuais, não?
Bivar: É, mas fisicamente não tem nada que ver com a Virginia. E em “Moulin Rouge” foi tão chata...
Mas não dava mesmo para transformar os seus diários em ficção?
Bivar: No ano passado senti que poderia fazer isso, com o conjunto do material. Aliás, todo ano fazem lá muita teatralização com temas do grupo de Bloomsbury, a partir da correspondência de Virginia com a Vita Sackville-West etc. Participam ótimos atores, como o Edward Fox, o Simon Callow. Este ano esteve lá o Merlin Holland, neto do Oscar Wilde...
As pessoas bebem pouco, mas sempre tem uma taça de vinho branco, troca-se idéias, é uma coisa civilizada, com conversas deliciosas, gente que está no auge do brilho intelectual, que agora dizem que é terceira idade. A Frances Partridge, por exemplo, está com 102 anos e é muita engraçada, com frases de muito “witty”. Por que a gente não faz encontros assim no Brasil, com tantos lugares interessantes, onde se come bem etc.?
E o lado sensual dessa gente em tempos passados parece que era bastante forte, não?
Bivar: Ah, sim. Numa das últimas vezes, por exemplo, fomos à casa do Richard Garnett, que era filho do David Garnett, que teve um caso com o pintor Duncan Grant, que era bonitão e namorava o Keynes, o Lytton e todo mundo. Na fazenda Charleston eles transavam demais, levavam até uns bandidos e uns garotos meio barra-pesada, que roubavam os quadros do Duncan. A Vanessa Bell, irmã da Virginia Woolf, apaixonou-se pelo Duncan e tiveram uma filha, a pintora Angelica Garnett. Em 99, na Tate Gallery, houve uma grande retrospectiva dos pintores do grupo Bloomsbury.
Você acabou de voltar de um outro “séjour” literário, desta vez no sul da França. Por que foi para lá?
Bivar: Fui com estudiosos do grupo de Bloomsbury e visitamos os lugares onde Virginia Woolf e os pintores ingleses viviam parte do ano: Cassis, cidade próxima a Marselha. Foi por uma semana, mas fiquei outros 20 dias estudando os pintores pós-impressionistas franceses, Cézanne, Matisse, Van Dongen, Picasso e demais, nos locais onde eles tinham ateliês, em Nice, Aix-en-Provence e outros lugares.
Tenho um lado de pintor diletante, e até cometi algumas aquarelas e desenhos. Em meu “sketch book” dessa viagem fiz pequenas cópias das obras que via por lá. Terminei em Paris, com um vis-a-vis com a “Mona Lisa”, no Louvre. Era tanta cabeça de japonês na minha frente, mas eu não podia deixar de realizar esse sonho de infância, de fazer um esboço da Mona. (Bivar acende um cigarro)
Não sabia que você fumava...
Bivar: Só enquanto a gente toma um vinho. Mas comecei a fumar muito garoto, aos 18 anos, quando fui para o Rio estudar e uma tia minha arranjou ingressos para irmos ver o Sérgio Cardoso no teatro. Ele estava na peça “Sexy”, do Silveira Sampaio. Daí fui cumprimentar o Sérgio no camarim e ele mandou que eu o esperasse desfazer a maquiagem. Em seguida eu o acompanhei até o seu apartamento, em Copacabana. Mantivemos a amizade, mas quando eu tinha de esperá-lo depois do teatro ficava muito nervoso e passei a fumar.
Outra coisa relacionada a cigarro que eu não esqueço é da primeira temporada do Rudolf Nureyev no Brasil, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 66. Eu estudava no Conservatório Nacional de Teatro e a professora de expressão corporal, a Nelly Laport, amiga da Margot Fonteyn, me levou junto com um grupo de seis outros alunos para participar da montagem de “Giselle”. Nós fazíamos os caçadores do séquito de Nureyev. Durante os ensaios eu estava fumando no palco e levei uma baita bronca do Nureyev: “Boy, don’t smoke here!”.
Lembro que a estréia do espetáculo estava com atraso, e a Margot ficou nervosíssima, porque o Nureyev não saía do camarim. De repente, a porta abre, ele vem correndo e começa o espetáculo, enquanto do camarim sai um dos garotos do séquito, todo destruído, a camisa rasgada, os óculos quebrados, com marcas horríveis de chupões no pescoço. Foi um escândalo!
Mas já que estamos falando desses tempos mais antigos, como você começou no teatro profissional?
Bivar: Fiz curso de teatro no Conservatório Nacional de Teatro, no Rio, e comecei de fato como autor com “Cordélia Brasil”. Mas, antes disso, na época da cultura pop, eu fiz com o Carlos Aquino um happening teatral no Rio, e isso me deixou conhecido da noite para o dia, pois o título, que era meu, provocou enorme curiosidade: “Simone de Beauvoir, Pare de Fumar, Siga o Exemplo de Gildinha Saraiva e Comece a Trabalhar”. Depois de uma notinha em coluna social, todos comentaram esse título na imprensa, de Millôr Fernandes a Stanislaw Ponte Preta, e o Carlinhos de Oliveira no “Jornal do Brasil” deu treze crônicas por causa desse título.
Eles diziam que era uma peça sobre a “geração Paissandu”, por causa do cinema Paissandu. Aí criou-se uma expectativa enorme. A primeira pessoa para quem dei uma entrevista foi o Fernando Gabeira, no “Jornal do Brasil”, antes do seqüestro. Mas a peça era uma piada. O Yan Michalski, do “JB”, publicou uma crítica com título-trocadilho: “Gildinha dá raiva”, dizendo que a gente possuía um talento nada desprezível, mas tinha ocupado muito espaço na mídia com essa brincadeira, enquanto no Rio estava atuando o Teatro Oficina e havia tanta coisa séria.

Quem trabalhou nessa peça-happening?
Antônio Bivar: A Tânia Scher, uma das garotas de Ipanema, maravilhosa, que aos 17 anos não saía das capas das revistas da época, o Ênio Gonçalves, o Perry Salles. A direção era de um assistente do Glauber Rocha, o Álvaro Guimarães, da turma que tinha vindo da Bahia para o Rio, amigos da Helena Ignez.
Você cismou com os títulos compridos...
Bivar: No ano seguinte houve outro título comprido, “O Começo é Sempre Difícil, Cordélia Brasil, Vamos Tentar Outra Vez”. E “Alzira Power” era, por sua vez, “O Cão Siamês de Alzira Porra Louca”... E teve “Abre a Janela e Deixa Entrar o Ar Puro e o Sol da Manhã”, que foi montada em 68, em São Paulo, com Maria Della Costa, direção de Fauzi Arap, com a qual ganhei todos os prêmios do ano, inclusive o Molière, indo para Londres com esse prêmio.
Depois dirigi os shows e o teatro ficou meio de lado, por causa da onda “divina decadência” que chegou em 72 e 73, muito pelo cinema, com “Laranja Mecânica”, “O Último Tango em Paris” e, principalmente, “Cabaret”. Era uma coisa muito forte. Essa onda pegou o teatro, com o show “Dzi Croquetes”, que era nesse espírito, e com Ney Matogrosso e os Secos e Molhados, que foi uma comoção no Brasil, mais do que Tiazinha hoje na capa da “Playboy”, porque eu me lembro de ter viajado pelo interior do Brasil, meio andarilho que eu era, e em todos os lugares as pessoas comentavam a maquiagem do Ney.
Em 1976, você ainda escreveu uma peça especialmente para o Ziembinski, “O Quarteto”, que eu assisti no Teatro Ipanema e lembro que era emocionante.
Bivar: Foi numa fase meio difícil, durante um retorno meu ao teatro como ator, fazendo o Riff Raff do “Rocky Horror Show”, que eu co-traduzi. Eu sempre fui anarquista, queria acabar com o teatro, isto é, com tudo o que tinha vindo antes. No mesmo ano escrevi mais uma peça, que era uma espécie de encontro entre a classe média rica do Arena, o Guarnieri e o Boal, e a classe média baixa de autores como eu e o Zé Vicente. Fiz uma coisa muito sofisticada no teatro de Arena, “Gente Fina é Outra Coisa”.
O Paulo Villaça dirigiu, o elenco tinha a Yolanda Cardoso, o Clóvis Bueno fez o cenário art-déco, Glorinha Kalil deu os tecidos para o Clodovil fazer os figurinos. Era uma coisa um tanto agressiva para o Arena. Sábato Magaldi ficou indignado, dizendo que eu não era sério, mas Telmo Martino, no “Jornal da Tarde”, me comparou a Noel Coward.
Eu senti na pele que a gente já não interessava muito e tinha de dar lugar a novidades, como o grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone, do Rio. Então o Ziembinski me chama para escrever a peça que comemoraria os seus 50 anos de carreira, que começou na Polônia e continuou com “Vestido de Noiva” no Brasil etc. Eu lembro que todos falavam “Mestre Zimba”, que foi ele quem fez Cacilda explodir. Era uma época em que eu estava para baixo, com muito sexo, drogas e rock’n roll, anos 70, e esse pedido foi ótimo.
A gente conversava sobre “Quarteto” pelo malote da Rede Globo. Ele me orientava sobre tudo o que queria. Eu pensava: “Vou fazer tudo o que o mestre mandar”. Portanto os personagens eram da cabeça dele, havia um astrólogo de 68 anos, que era a idade dele... Ele dirigiu o espetáculo, orientou o cenário do Clóvis Bueno, tudo. Mas na biografia dele nunca ninguém mencionou detalhes desse trabalho, ninguém me consultou. Nessa peça havia, por exemplo, uma cena muito especial. O Ziembinski tinha feito uma rara viagem para o exterior, pois quase não saía daqui, e viu, em Paris, os filmes do Andy Warhol. Ficou apaixonado pelo ator Joe Dalessandro e por aquela coisa meio “boring”, meio dopada e parada. E o Zimba já era conhecido e odiado desde o começo da carreira por suas pausas e silêncios longuíssimos. Já tinha essa coisa ralentada. Então ele queria que os personagens da peça fossem meio “vazios”, ou um tanto medíocres, ninguém deveria fazer nada muito brilhante, uma gente comum.
A cantora Marlene interpretava uma dona de boutique fútil, e o timing dela era o oposto do Ziembinski, um mosquito elétrico, uma tocha humana. Tinha a Louise Cardoso, lindíssima, com 18 anos, saída do grupo Asdrúbal. E o Roberto Pirillo no auge da juventude. Ele era um fetiche do Ziembinski, que me pediu para escrever uma cena longa, de uns dez minutos com o Pirillo nu, para toda noite dessa temporada ele poder se deleitar com o objeto de desejo dele.
A crítica não entendeu, mas as pessoas que foram à estréia adoraram, embora a censura tenha provocado um adiamento de quatro dias -a platéia sentou, mas o pano não abriu, e a Emilinha Borba, declarou na primeira fila: “Nossa!, a Marlene faz qualquer coisa para chamar a atenção”. Mas depois aconteceu. Excetuando o Tite de Lemos, que escreveu elogios em “O Globo”, foi um massacre total. A “Veja” publicou um texto intitulado “Tristes bodas”. E o Yan Michalski, “Quatro cabeças vazias”. Perguntavam por que eu tinha perdido meu tempo a escrever e o Ziembinski a montar tal coisa...
Não entendiam que era uma coisa conceitual e conceituada pelo Zimba. Se houvesse essa compreensão, essa celebração de 50 anos não teria sido tão massacrada. Nessa época, 1976, a crítica estava no auge do mau humor e reivindicava, em meio à ditadura, denúncias ao regime e à tortura. Não tinha lugar para aquele teatro.
Aliás, quando o Plínio Marcos foi ver “Abre a Janela...”, no auge da ditadura, em 68, no teatro Maria Della Costa, disse: “Porra! Nós estamos lutando pelo arroz com feijão e já vem o Bivar trazendo a sobremesa!”. Eu fiquei me perguntando: “Por que não a sobremesa?”... Eu não ia me meter a fazer uma coisa que não dominasse e sempre gostei da comédia, desse lado absurdo da vida e do teatro. E o público adorava. “Cordélia”, com a Norma Bengell, no teatro de Arena, foi uma comoção.
Eu me lembro da Maysa aos prantos, ela que usava aquela maquiagem densa nos olhos, toda derretida, escorrendo preto pela cara. A Wanderléia, a Cacilda Becker, todas choravam naquele teatrinho apertado. A Norma, que só tinha experiência de cinema, fez um negócio de louco, uma catarse. Era uma emoção que arrebentava, e depois ela foi seqüestrada pelo Exército, porque declarou aos jornais que o Galeão tinha sido vendido para os Estados Unidos, uma conversa que ela escutou de orelhada na ponte aérea. Lembro que a peça estreou no Rio, no teatro Mesbla, na cobertura daquele prédio, com bomba da polícia estourando, bomba de gás.
Mas a implicação da censura era com a Norma ou com o texto?
Bivar: Eles tinham proibido a “Santidade”, do meu amigo José Vicente, a “Barrela”, do Plínio Marcos, e a “Cordélia Brasil”. As três peças da nova dramaturgia brasileira foram proibidas pela censura. Mas o nosso produtor era o Luís Jasmim, um pintor que fazia retratos de princesas e atrizes européias a bico de pena e queria ser ator, e por isso produziu a peça, para atuar. O outro produtor era o Vianinha (Oduvaldo Viana Filho), apaixonado pelo texto. Mas o Jasmim, que tinha dinheiro e sempre freqüentou a alta sociedade, as madames, conhecia dona Yolanda Costa e Silva.
Então bateu rápido um telefonema para dona Yolanda e fez um retrato dela com os netinhos. Ela conversou com o marido e ele ligou para o Gama Filho, ministro da Justiça. Pediram para a Norma não ir ao Ministério, porque chamava muito a atenção da imprensa. E eu fui sozinho liberar a peça. O ministro cortou uns oito palavrões, mas de repente substituía “sacana” por “filho da puta”, uma coisa incompreensível. Mas eu sempre tive problemas com a censura.
Mas “Cordélia” era também uma comédia, não?
Bivar: Tinha esse lado engraçado, mas era a tragicomédia de uma vida mesquinha, uma vida de esconder cigarros da vista do parceiro. No mesmo ano teve a montagem de “Abre a Janela...” e ganhei todos os prêmios. Nessa temporada, eu, a Norma, a Gilda Grillo, o José Vicente, morávamos no hotel Amália, na rua Xavier Toledo, no centro de São Paulo.
Esse era um Chelsea daqui, onde ficava a companhia do Paulo Autran, o Lennie Dale, Gilberto Gil... E quando a rainha Elizabeth visitou o Brasil passou por aquela rua com sua comitiva, num Rolls Royce conversível, toda vestida, formal, de luvas, mas descalça, conforme a gente via de uma sacada do hotel Amália. Então eu escrevi “A Passagem da Rainha”. A galeria Metrópole, ali perto, era o máximo naqueles anos, com todas aquelas boates e restaurantes, a putaria, a noite e a pegação. Tinha o Pari Bar, tinha o bar Barroquinho, do Zilco Ribeiro, que era um diretor sofisticado de teatro de revista...
O Mick Jagger, o Keith Richards, a Marianne Faithfull e a Anita Pallenberg ficavam hospedados no hotel Jaraguá e passavam horas sentados no Pari Bar, à tarde, em 69. O Mick comprava aqueles colares de macumba, de metal barato. Eu via a atriz francesa Barbara Laage, maravilhosa, por ali. Ela estava meio às traças e veio fazer um filme com o Walter Hugo Khouri. O centro era maravilhoso naquela época.
Como é a peça “A Passagem da Rainha”?
Bivar: Lembro que sempre convidava umas putas e michês para assistir à “Cordélia” no teatro de Arena. Na época em que a rainha veio fizeram uma “limpeza” nas ruas aonde ela passaria e todos aquele conhecidos foram presos. Naquele tempo eu estava fazendo uma pesquisa e ia muito à rua do Triunfo, a um quarto de hotelzinho onde moravam uma puta e seu garoto. Então eu ficava olhando a penteadeira com espelho e um azulejo no qual estava pintado: “Dizem que há mundos lá fora que nem em sonhos eu vi, mas que importa todo o mundo, se o mundo todo é aqui?”.
Eu achava lindo aquilo, naquele quarto sórdido, e escrevi a peça, com esse lado das putas que a rainha não viu e de umas pessoas da comitiva da rainha que ficam loucas com um michê que encontram na rua, alguém que tinha escapado da “limpa”. A peça foi proibida aqui, mas quase montada em Paris, com a Micheline Presle... Eu estava em Londres e a Gilda Grillo me convidou para ver ensaios em Paris, quando ela e a Norma Bengell estavam exiladas lá, em 72.
A Jeaninne Worms, autora que lia todas as peças novas daqui na época, e que costumava receber em casa o Ionesco e o Beckett, escolheu traduzir “A Passagem da Rainha”. O crítico do “Le Point” considerou que o texto ia mais longe que o Sade. Eles já tinham encenado “Os Convalescentes”, do Zé Vicente, montagem para a qual a Simone de Beauvoir escreveu o texto do programa. E eu passei um tempo acompanhando os ensaios de “A Passagem da Rainha” em Paris.
Num dia me ofereciam jantares maravilhosos e no outro era uma miséria danada. Fiquei morando em Pigalle, com a cantora baiana da bossa nova Telma Soares, que tinha saído da cadeia na Itália. Ela tinha sido pega na casa onde foi preso o ator Pierre Clementi, que estava fumando haxixe, lembra? Todos ficaram presos por dois anos, mas ela nem fumava, era uma inocente. A Telma tem um disco clássico com músicas de Nelson Cavaquinho.
Ela era boa cantora?
Bivar: A Telma era boa, mas muito devagar... A música já estava longe, e ela sempre lá atrás. Bom, em Paris eu morei até num banheiro de três garotas francesas, e uma delas hoje é estrela, a Anémone Bourguignon. Aí vim para o Brasil dirigir shows, enquanto em Paris a Gilda Grillo e a Danda Prado entravam de cabeça na coisa feminista, ficando amigas da Delphine Seyrig e não sei mais o quê. Nunca mais ouvi falar dessa montagem da “Passagem da Rainha”. Nos anos 80, em São Paulo, fizeram uma montagem deplorável no Bixiga, com a Nilda Maria -ótima atriz ótima, que havia sido torturada- e com a Bronie, que era modelo conhecida.
A crítica ainda te atacava?
Bivar: A Marta Góes deu uma crítica ótima na “Istoé”. Mas o Sábato Magaldi foi ver num dia em que não tinha quase ninguém. Só estavam umas poucas pessoas e a Formiga, uma travesti que morava embaixo do Minhocão, além de várias outras travestis. Eu estava ali pela porta do teatro, com a mãe do Branco Melo, que era a administradora, e a gente resolveu colocar todas pra dentro. Toda vez que entrava uma atriz no palco as travecas sentadas atrás do Sábato diziam, em coro, com aquelas vozinhas de papagaio: “Arrasou!”. Foi um desastre, ele escreveu que eu era um mito que se desfazia.
Alvaro Machado
É jornalista, colaborador da "Folha de S. Paulo", autor de "A Sabedoria dos Animais" (ed. Ground), tradutor de “A Linguagem dos Pássaros” (ed. Attar) e organizador de "Aleksandr Sokúrov" (ed. Cosac & Naify) e de "Mestres-Artesãos" (ed. Sesc-SP). Coordena o site-catálogo da editora Cosac & Naify (www.cosacnaify.com.br).