Narrativas
não expressam diversidade brasileira, dizem escritoras
Publicado em 23/03/2019 - 20:01
Por Camila
Maciel – Repórter da Agência Brasil São Paulo
Mais de
70% dos livros publicados no Brasil entre 2005 e 2014 são de homens, com uma
predominância de 97,5% de autores brancos, revela pesquisa desenvolvida pelo
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea da Universidade de
Brasília (UNB). Para escritoras brasileiras, o dado expressa uma realidade
sentida por autoras que reivindicam “narrativas a partir de outras vozes”. “A
gente escreve sobre um universo que nos é familiar. Como essa literatura feita
hoje chega a um leitor que não se identifica com esse universo’’. Questionou a
escritora Ana Maria Gonçalves, autora de “Um defeito de cor”.
Ela
participou esta semana em São Paulo, junto com a também escritora Bianca
Santana e a chilena Sara Bertrand, do Seminário Leitura e Escrita: lugares de
fala e visibilidade, no qual debateram sobre o tema “Direitos Humanos e
Literatura”. “A gente luta pela diversidade dessas histórias, dessas mulheres e
homens negros que estão aí tentando fazer uma literatura, que dificilmente vai
chegar até vocês. É algo que tem que ir atrás. Quando você quer só ler mulheres
negras, tem que ir atrás, perguntar, não é espaço fácil. Outras histórias
precisam ser contadas”, disse Ana Maria.
Sara
Bertrand também enfatiza a necessidade de uma literatura plural. “Existe um
coro de vozes que merecem ser escutados. Merecemos. O mundo talvez fosse
diferente se deixassem de temer a linguagem e começarmos a entender a causa
desse medo, medo de começar a escutar as mulheres, os homossexuais”, disse a
autora de “A mulher da guarda”. Nascida na ditadura chilena (1973-1990),
a escritora aponta que essa experiência marca sua escrita. “Não vejo distinção
entre o que escrevo a partir da memória, da identidade e a pergunta ‘para onde
vai a humanidade? ’”.
Trajetórias
As
autoras destacam a importância da própria trajetória na construção das
narrativas. Um defeito de cor foi um livro chave na formação
da minha identidade. A gente que tem essa identidade mestiça no Brasil, minha
mãe é negra e meu pai é branco, desde muito cedo as pessoas te incentivam a
abandonar essa negritude”, relatou. Ela conta que ao escrever este livro buscou
histórias que não teve acesso. “Uma história que me foi negada historicamente,
socialmente, culturalmente e que me foi negada a ponto de quererem que eu não
seja parte desse lado”, explicou. A obra é sobre uma africana idosa e cega que
viaja ao Brasil em busca do filho perdido há décadas.
Bianca
Santana conta que também trouxe de suas experiências e da “necessidade de
saber” a base para a sua escrita. “Veio da necessidade de saber as histórias de
qualquer coisa que não sei o que é. Gosto muito de ouvir histórias”. Ela relembrou
episódios da infância em que ficava fascinada pelo mundo dos livros, mas que
estranhava histórias distantes da sua realidade. “Lembro de perguntar muito para
minha mãe e avó: ‘Mas é as histórias indígenas? ’. Não tinha tanto acesso à
informação. E elas falavam: ‘Mas índio não escreve, menina. Que bobagem! ’”,
contou.
Pesquisa
O
levantamento desenvolvido pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira
Contemporânea da Universidade de Brasília (UnB) revela também que mais de 60%
dos autores moram no eixo Rio-São Paulo. A pesquisa, que traça um panorama dos
romances brasileiros, analisa três períodos: de 1965 a 1979, de 1990 a 2004 e
2005 a 2014. Em relação ao sexo dos autores, percebe-se que há um pequeno
avanço na participação feminina entre o segundo (27,3%) e o terceiro período
(29,4%). O percentual na década de 1970 era de 17,4%. Em relação à questão
racial, a participação de brancos se ampliou, passando de 93% de 1965 a 1979,
chegando a 93,9% de 1990 a 2004 e alcançando 97,5% de 2005 a 2014.
Para a
coordenadora do estudo Regina Dalcastagnè, professora do Departamento de
Teorias Literárias e Literaturas da UNB, os dados demonstram que o racismo
estrutural na sociedade brasileira também está presente no meio literário. “O
racismo, quando não exclui simplesmente, dificulta o acesso dos negros a todos
os espaços legitimados de produção e enunciação de discursos – espaços de
poder, em suma. Não se trata de acusar um editor ou outro de ser racista ao não
publicar autores negros, é mais complexo que isso, e por isso mesmo é pior”.
Ela
avalia que o campo literário – formado por escritores, editores, críticos,
professores, jornalistas, curadores, bibliotecários, leitores – aceita “muito
mal a produção de autores negros”. “Quando muito, coloca-a em um nicho para evitar
que se misture à Literatura com ‘l’ maiúsculo, aquela coisa que não teria cor,
sexo, classe, orientação sexual, idade”, apontou. Para a pesquisadora, no
entanto, esse contexto vem, aos poucos, se alterando. “Nunca tivemos tantos
escritores negros e negras produzindo e sendo lidos – é preciso lembrar que o
acesso dos negros ao letramento no Brasil foi muito tardio e que o acesso às
universidades é recentíssimo”.
Regina
Dalcastagnè avalia que redes sociais, publicações independentes, coletivos de
escritores, pequenas editoras têm apontados novos caminhos na democratização da
literatura. “O caminho não parece ser o das grandes editoras, das grandes
livrarias e da grande mídia”.
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Edição: Valéria Aguiar