Escolho
amar outros homens gays negros
Se tomarmos a grande mídia como referência, é
fácil imaginar que o amor romântico entre dois homens gays negros praticamente
não existe. Exemplos famosos disso são os jogadores Michael Sam e Derrick Gordon que tem
parceiros brancos e, mais recentemente, o personagem central na trama do
seriado Empire (do também preto Lee Daniels) que
tem um namorado mexicano facilmente lido como branco. Sinceramente, quando os
poucos modelos de homens negros gays bem sucedidos estão atados a pares
brancos, acredito que a mensagem implícita nesses casais é que o amor entre nós
é inexistente. E, irritantemente, o debate acerca desse amor se pauta na
branquitude, e não no amor entre nossos iguais.
Acho que precisamos falar sobre o amor entre nós
mesmos, porque, infelizmente, a impossibilidade de um amor gay negro não é um
conceito apenas da mídia mas entre gays negros também. Não é necessário ir
muito além dos aplicativos de pegação para detectarmos negros cheios de
auto-ódio. Perfis que mais parecem tratados de fronteira do que as
atraentes chamadas que elas deveriam ser. Frases tais como: “não curto
afeminados” ou “só transo com pretos machos de verdade” são usadas como
carimbos de passaporte que restringem as possibilidades de pareamento.
Contudo, embora a mídia faça parecer que
negros gays – especialmente os ricos e graduados – só encontram
segurança e conforto em braços brancos, tenho dificuldades para pensar em algum
tipo de relacionamento – não fisicamente abusivo – capaz de provocar em mim
maior estranhamento e preocupação. Meus envolvimentos amorosos não
deveriam ser uma situação onde me pergunte se sou fetiche de alguém, ou onde eu
precise explicar as nuances da minha vivência cultural, assim como os traumas
sociais com que lido diariamente desde que nasci. Não estou dizendo que
relações interraciais devem ser evitadas. Não sou contra esse tipo de amor,
apenas pró-afrocentramento.
Acredito que por sermos gays e negros, temos que
ser zelosos com nossas escolhas românticas. Justamente porque vivemos numa
sociedade que condena como e quem escolhemos amar. Portanto,
escolher amar outros homens negros é tanto um ato de amor próprio quanto de
resistência política. Como definiria Joseph Beam, se trata de um ato
revolucionário – apesar de bastante dificultoso. Porque ser um homem negro gay
que escolhe amar outro igual, significa que temos que amar superando os danos
psicológicos e emocionais que o mundo nos impôs.
Na minha vida, o tipo de amor que mais me fez bem
foi o amor entre negr@s. Quando era um garoto no subúrbio de Detroit, os
referenciais de amor que me eram mais visíveis e notórios eram os afrocentrados.
O amor por vezes ríspido, porém honesto e magnânimo afeto de mulheres negras, o
problemático e teatral amor de homens negros e o afiado, vibrante e
enérgico amor que recebi dos meus colegas. Embora não haja uma noção única do
que seja o amor negro que seja pura e pleno, todas as vezes em que eu
experimentei amor na sua forma mais radical e edificante a outra pessoa era
negra. Um tipo de amor que entende o que significa ser descendente de escrav@s,
sujeito aos traumas do passado e do presente que se desencadearam a partir
disso, mas ainda assim persistir nessa vida com “paixão, compaixão, humor e estilo“.
Pra ser honesto, boa parte da força que
encontrei no amor que recebi de negros veio de mulheres. Quando os homens
negros mais velhos da minha vida tentavam demonstrar afeição por mim sempre era
atravessado por algum tipo de provocação ou agressividade. Depois de adulto, na
comunidade gay negra, não faltam exemplos de gongação e noções
patriarcais de masculinidade, mas também vivenciei grandes amores românticos e
platônicos com outros gays negros. Como o primeiro cara que me levou pra fazer
exame de HIV, aqueles que me consolaram quando passei por problemas na minha
família, que se esbaldaram comigo na pista de dança, e que demonstram adoração
totalmente desinteressada por mim, ainda que esses relacionamentos não tenha
durado muito tempo.
Então, ao invés de focarmos nas dificuldade
inevitáveis nas relações homofoafetivas entre negros, talvez seja a
hora de reorganizarmos a maneira que tendemos a encarar o assunto. Podemos
começar questionando o que significa para dois homens se amarem numa sociedade
na qual são ensinados a não expressar esse afeto. O que significa escolher amar
outro homem negro quando os corpos de quem amamos estão sujeitos a atos
desproporcionais de violência, pobreza e inúmeras desigualdades? O que
significa amar outro homem gay quando o amor entre negr@s já
é tão carregado de descrença? Uma forma de amor que
considerada inexistente, sem modelos onde se espelhar visto que
nos dizem que no início era Adão e Eva e não Adão e Ivo.
Apesar de todo o auto-desprezo
e das pouquíssimas chances de dar certo, escolho amar romanticamente
uma bicha nagô. Faço isso porque acredito que amar é um ato
político, e que se realmente nos amamos e queremos mudar a nossa comunidade,
devemos nos vermos representados nela. Se algum dia, por alguma razão
desconhecida eu me encontrar num relacionamento tradicional e mainstream, é
sem peso na consciência que eu faço questão de que seja com outro negro. E
essa intenção não se trata somente de afeto e amor, mas sim uma decisão
política. Numa sociedade que invisibiliza a homoafetividade negra, e que
investe bastante tempo focando para os poucos gays negros de destaque sejam
visto com um branco a tira colo, eu escolho afrocentar. Amar alguém tal como eu
sou. Amar outro ser que também resiste nesse país que silencia
nossas reflexões.