Friday, May 22, 2015

Esta também é minha historia...

MARCAS DA VIDA
James Baldwin     

Sempre acreditei que fosse a minha historia. Comecei a ler quando num domingo de dor, pela manha, fizera uns dois dias que havíamos enterrado nosso querido irmão, Jorge Bosco Viana, morto aos 19 anos em Belo Horizonte. Não sabia bem o que fazer naquele final de 1982. Como tudo era vazio, sem cor, terrível. Lua, sol, céus, estrelas, nada. Nem nada, nada. Apenas o vazio insistente de quem tem sua primeira grande perda. Depois vieram outras, aos milhares e fui aprendendo. Agora nem dói tanto, mas ainda dói, o suficiente para me paralisar. Então, dias depois, cheguei a este texto; aturdido e maravilhado, virou referencia nas minhas reflexões e literatura. É um excerto, uma copia das paginas 69 a 71
, da edição  1978, 1979 – Nova Fronteira.  MARCAS DA VIDA é uma lenda do celebrado e comprometido ativista negro, James Baldwin, apreciem...








...Que eram cantados pelo povo nos tempos antigos ao som de instrumentos musicais para que aqueles sons cheios de alegria, os salmos, chegassem aos ouvidos do Senhor. Essas foram as palavras de Davi, sabem quem era Davi? Bem, Davi saiu certo dia à procura daquele gigante malvado, à procura daquele gigante enorme, de aparência aterradora e má, que todos tanto receavam, um gigante chamado Golias. O pequeno Davi saiu à sua procura com uma funda e acertou o gigante malvado! Ainda não sabem quem era Davi? Era um pastor que alimentava as ovelhas famintas! Ouço alguém a perguntar quem era esse Davi, a pedir que fale mais sobre ele. Bem, Davi era Rei - era chamado o Rei Davi, e o povo se curvava em respeito a ele. Ah, sim! Ouço alguém a perguntar quem era esse Davi. Bem, deixem-me dizer-lhes, esse Davi tinha um filho que fugiu pela floresta tentando ocultar-se da ira do Senhor, e tinha um cabelo  longo belo; creio que tinha  muito orgulho do cabelo, e o Senhor fez com que todo aquele lindo cabelo se emaranhasse nas ramagens, nos arbustos e nos galhos das árvores da floresta,  onde o filho de Davi terminou por morrer, tentando ocultar-se da ira do Senhor, e ouvimos o Rei Davi ajoelhado, chorando como uma criança, fiéis, posso ouvi-lo a chorar, fiéis, sois capazes de ouvi-lo a chorar, o Rei Davi humildemente de joelhos, a chora, oh, meu Deus quem me dera ter morrido em lugar do meu filho, quem me dera ter morrido em lugar do meu filho, ah, ouçam o Rei Davi a chora, meu filho, filho meu! Agora querem saber sobre o Rei Davi? Creio que vou falar  um pouco mais sobre o Rei Davi essa manhã! O Senhor pôs as mãos sobre Davi - da casa de Davi vem o nosso Salvador, Cristo, nosso Senhor. 

O que quer que ela fazia, certamente não se tratava de logro: e a igreja parecia prestes a elevar-se ao encontro de Jesus. Não era capaz de andar de um lado para outro no púlpito como um pregador adulto, pois não ficaria visível se descesse da caixa. Mesmo assim, movia-se como poucos, os olhos, as mãos, os ombros, o pescoço a pulsar e a voz que não parecia a de uma garotinha de nove anos de idade. Para mim havia algo de amedrontador, tão amedrontador como  ouvir as pedras falarem ou presenciar a ressurreição um morto. Porque se o morto pode ser ressuscitado, a voz dessa criança seria capaz de faze-lo  mas quem quer presenciar a ressurreição dos mortos? 

E enquanto ela falava a igreja respondia: Amém! E bradava: bendito seja o Vosso nome! e Santo, Santo! E falai, Senhor Jesus! Mas quando ela parava a igreja parava, envolvida num terrível silêncio, a música irrompendo como uma tempestade. 

O pai e a mãe, parados, o pequeno Jimmy, quieto, Arthur sentado, empertigado, a boca aberta, os olhos espantados. 

– Agora têm noção de quem era Davi? Foi  aquele que desse: Bendito seja o Senhor que engrandeceu Sua misericórdia para comigo numa cidade sitiada! Ah, numa cidade sitiada! Davi foi aquele que disse: O Senhor é meu pastor, nada me faltará...! Davi era um pastor e creio que um bom pastor, pois não permitia que seu rebanho ficasse faminto, e daí ele dizer: nada me faltará

- nem mesmo nessa cidade sitiada! Ah, fiéis, creio que ele provou do pão da amargura algumas vezes. Creio que posso ouvi-lo esta manhã “Elevo os meus olhos para o monte de onde virá o meu socorro”. Creio que posso ouvi-lo a dizer, esta manhã: “Não te indignes por causa dos malfeitores”- fiéis, sois capazes de ouvi-lo? Nesta cidade sitiada. Ah, sim, creio que posso ouvi-lo a dizer que “aquele que habita no esconderijo do Altíssimo, á sombra do Onipotente, descansará”, ah sim, bem aqui nesta cidade sitiada! Creio que posso vê-lo olhando para Jesus, amém, clamando: “Meu Deus, por que me abandonastes?” Nesta cidade sitiada. Creio que posso vê-lo a andar nas ruas, nos metrôs, limpando o chão, amém! Nesta cidade sitiada, e esvaziando as latas de lixo e dizendo: Sim senhor; Sim senhora. Nesta cidade sitiada, creio que posso ouvir seus filhos chorando por pão nesta cidade sitiada; creio que posso ouvir o riso malvado desta cidade sitiado, como Golias deve ter rido ao ver aquele menino apenas com uma funda, ah, sim, rindo antes de ir ao encontro do seu criador, ah, sim, melhor será não rires do ungido do Senhor, melhor não haver risos diante do trono do juízo final.. Um dia... 

Meu coração clamou e a igreja, em silêncio, clamou. 

- ... um dia, acordaremos nesta cidade sitiada e presenciaremos a salvação divina! Nossos filhos não terão mais fome, nunca mais! Não veremos os anciãos tortos de reumatismo, lágrimas a lhe rolarem pelas faces – nunca mais! Bendito seja o senhor! Que engradeceu Sua misericórdia para comigo numa cidade sitiada! Esta cidade sitiada...Ah, ouço outra voz esta manhã dizendo que “se o Senhor não guardar a cidade, em vão vigia a sentinela!”  Não podem ouvir essa voz, esta manhã, fiéis? Ouço Davi a dizer: “Batei palmas, ‘todos, batei palmas” Ouço Davi a dizer: “Celebrai a Deus com vozes de júbilo.” E agora creio ouvir um dos parentes de Davi, o velho Irmão Josué, andando pelas muralhas da cidade sitiada, tocando a trombeta fora das muralhas da cidade sitiada, e ouço alguém a dizer como ruía as muralhas da cidade. Daquela cidade sitiada. Ouço Davi dizendo novamente: “Levantai, ó portas, as vossas cabeças, levantai-vos, ó portais eternos, para que entre o Rei da Glória.” Ouço alguém a cantar, calmei...! 

Minha voz e a igreja responderam: 

- E Ele me enviou. 

– Clamei!

- E Ele me enviou.

- clamei!

- E Ele me enviou. Enviou minha pobre alma. 

O piso sob os meus pés tremeu, as próprias paredes pareciam balançar e uma tempestade eclodiu num troar de mãos e pés e na fúria do piano, no tropel- como cavalo!- dos padeiros, e o povo começou a grita. Júlia, permanecendo no mesmo lugar, a olhar, como uma alta sacerdotisa. Ela provocara essa tempestade ou a deixara fluir de si, mas nem cantava nem gritava, os olhos parecendo fitar o Egito. O pai subiu ao púlpito, aproximou-se dela e enxugou- lhe  a testa – e, sim, nesse momento via-se que ele a amava- levando-a para longe dos olhares, para o trono real lá em cima.           

Este mesmo pai a estrupa quando da morte de sua esposa. A menina se apaixona pelo pai e ajuda a matar a mãe, que sabendo de tudo amaldiçoa a filha, entregando-lhe os cuidados do irmão rejeitado, que se tornara amante do cantor Artur. É uma historia lindos, um libelo, um elogio a sociedade americana e suas contradições. E ainda é, em parte, a minha historia.



 É uma historia de vida e um acervo maravilhoso, de gente e de coração.